segunda-feira, 9 de setembro de 2013

O Voto (parte I)

- Anda logo com isso!
- Pera, porra! Deixa eu ver isso aqui!
- A gente tem que derrubar logo essa porra. Nado tá enchendo meu cunhão já.
- Eu sei, frango, mas deixa eu ver o que é isso aqui. Parece um diário.
- E daí? Tu nem sabe quem escreveu, então o que interessa...
- Cara, eu gosto de coisa antiga, principalmente coisas que eu sei que já teve um dono.
- Tá, tá bom. O que tem escrito aí?
O homem olhou com certo fascínio o caderno bastante velho e meio roído nas bordas, mas cujas linhas escritas estavam bem preservadas e cheias de uma caligrafia nítida.
- Vamo trabalhar e depois eu leio com calma – disse o homem, guardando o caderno com as suas coisas e apanhando a marreta.
Em sua casa, após jantar e ajudar a filha com o dever de casa, o homem pegou o caderno e se pôs a ler as páginas. O volume tinha as páginas emboloradas e acastanhadas pelo tempo. Havia uma data na primeira folha, escrita com esferográfica: dezembro de 1987. Em seguida, iniciava-se o relato, cujas primeiras palavras de pronto prenderam o interesse do homem:
“À aqueles que por ventura lerem estas linhas, peço apenas que não me julguem. E advirto para que tenham força em seus espíritos. Se você não tem nervos fortes e facilmente se impressiona, não leia além deste ponto.”
O que relato aqui – prosseguia a caligrafia firme – não é nada além da verdade, que decidi narrar para que não a levasse comigo ao túmulo. Sei que não irão crer no que digo aqui, mas isto não importa. Não mais.
Para minha sorte, existem ainda boas pessoas no mundo, como Pedro e seu sócio João, que não apenas confiaram a mim um trabalho honesto como me permitiram me abrigar em seu restaurante, servindo assim como seu vigilante no turno da noite. Nem todos tem família após trinta anos de cárcere. Sobretudo os condenados por assassinar um parente. Não imagino o destino de minha irmã e meu irmão, nem de meus tios e primos. Trinta anos e sequer uma carta. Mas não os detesto, não os condeno. São tão inocentes quanto eu mesmo. Na verdade, até mais. Não testemunharam o que eu testemunhei, e nisso são infinitamente abençoados.
Vai ser difícil para quem ler estas linhas, cuja tortuosidade eu lamento muitíssimo, imaginar o inferno na Terra, em vida. Imaginem-se privados por completo de sua privacidade, de seu conforto, de qualquer coisa agradável, saudável ou meramente familiar. As celas são mal iluminadas, cheiram à suor, ao ranço de corpos pouco asseados e à  mofo. A comida é apática e não nos apetece, e é necessário estar constantemente em alerta, sempre avaliando com quem conversamos e o que dizemos, sob pena de ser degolado, ou ter o corpo perfurado por chuços, o que talvez seja até pouco quando lembro do nojo, a dor e a humilhação da sodomização. Trinta anos. Como se fosse pouco o que descrevi acima, havia ainda a inocência, pois não havia cometido os crimes dos quais era acusado. Não houve crime, sequer, embora o caminho percorrido pelo velho – esteja ele onde estiver – seja permeado de atrocidades, muitas das quais jamais saberemos. Sim, cumpri trinta anos no inferno livre de culpa. Foi-se minha saúde, foi-se minha vida toda. Não sei como não se foi junto minha sanidade, depois daquilo que ouvi do velho e, pior, daquilo que pude ver com meus próprios olhos. A verdade sobre a morte do velho, se é que de fato morreu na ocasião, é simplesmente impossível de ser tida como tal por quem não houvesse visto tudo com seus próprios olhos ou não houvesse testemunhado em suas vidas alguma forma de horror igualmente inenarrável. Ninguém jamais acreditaria em nenhuma palavra minha e, de qualquer forma, eu ainda hoje não sei o que poderia ser pior que ter assistido àquilo que assisti naquela noite.
Passamos o fim de semana no interior, comemorando o aniversário de 107 anos de meu tio-bisavô, Mathias. Nenhum de nós acreditava que uma pessoa pudesse viver tanto tempo. O velho era um homem muito rico, muito gentil e muito generoso, com uma vasta cabeleira branca e mãos grandes e habilidosas. Da família toda, a pessoa que lhe era mais apegada era eu, e aquilo não havia mudado desde criança. Costumávamos cavalgar juntos por suas terras, tanger gado, pescar no riacho da fazenda. Mas muito de seu vigor ficara no passado, e em nossas ultimas visitas ficamos somente conversando sobre outros tempos, estórias de quando nem meus pais eram nascidos. Ficávamos nós dois por horas assim noite adentro, e não foi diferente naquela ultima festa.
Quando, no final da tarde do domingo, minha família se preparou para ir embora, o velho me pediu para ficar, pois tinha algumas coisas a resolver e precisaria de minha ajuda, além do que, minha presença naquela casa imensa seria boa para alegra-lo e melhorar-lhe o ânimo, pois ninguém tem a melhor saúde naquela idade. Tendo me separado fazia pouco tempo de minha noiva e recentemente demitido, não vi problemas, embora preferisse ir para casa e seguir procurando um novo trabalho no dia seguinte.
Já naquela primeira noite, percebi algo estranho. Bastante discreto, devo dizer, e por isso mesmo não me causara de pronto nenhum grande alarde. Não sei se o olhar gelado e reticente da sua governanta – uma senhora miúda, pálida como uma convalescente e de cabelos brancos – ou algo mais sutil, como o frio da madrugada se infiltrando pelas frestas das portas e janelas no silencio sepulcral daquela casa enorme. Não sei dizer ao certo o que, naquela noite, me causou tão soturna sensação.
No dia seguinte me senti envergonhado e meio desconfortável por acordar um tanto tarde. Uma sensação inquietante de desconforto em estar naquela casa grande e opulenta quando devia estar pondo minha vida de volta nos eixos. Desci à cozinha, onde a governanta me respondeu com bastante secura ao meu bom dia, retirando-se logo em seguida para a área de serviço, deixando-me com uma persistente má sensação.
Fui ao jardim à procura do velho Mathias. Ainda era o mesmo jardim no qual brincara bastante em minha infância, mas somente naquela manhã pude observar o detalhe das estátuas. Sempre estiveram ali e sempre as vi, solenes e esculpidas com extremo esmero. Sete. Sete anjos. Cada um portando uma espada, com uma expressão grave em seus rostos de pedra, numa pose de quem está pronto a repelir algum inimigo. Todas voltadas para o muro principal da mansão. A inquietação, suave e persistente, agitando-se em minha cabeça. E ali, pensativo em sua cadeira de rodas, estava o velho. Parecia olhar para o vazio, como se olhasse para outros dias. Fui até onde estava e ficamos ali um bom tempo a conversar, e mesmo sem esconder sua saúde frágil, vi o ânimo do velho melhorar bastante, embora não me deixasse a impressão de que escondia umatensão qualquer.
Naquela noite, entediado e insone, me pus a vagar pela casa, com uma vela na mão. Notei durante o dia uma certa melancolia e uma certa decrepitude na suntuosidade daquela mansão, que já vira dias melhores e de maiores alegrias e que então abrigava apenas um velho, a taciturna governanta e uma bonita enfermeira que cuidava do velho fazia alguns meses. Se fosse mais esperto, e minha vida estivesse mais em ordem naqueles dias, certamente teria dado mais atenção à minha intuição, aos avisos que recebi, pois à noite, uma atmosfera de estranheza que eu jamais soube explicar se apossava do lugar, como uma teia de sombra e silencio escorrendo dos cantos e das frestas, exalando dos quadros antigos e da mobília secular. Em minha inspeção noturna pela casa, na qual insisti somente para me provar que não havia nada o que temer ali, deparei com uma porta ao fundo do porão, lembrando-me naquele momento que jamais, desde que podia me lembrar, havia ido naquele cômodo. Senti, pela primeira vez, um ímpeto verdadeiro de ir adiante e ver o que havia ali dentro. Hesitei por alguns instantes, sentindo aquela atmosfera se impregnar em meus poros. Podia jurar que alguém estava me observando com olhos inamistosos. Meu coração pareceu disparar com um súbito e inexplicável temor quando estendi a mão. Mas quase deixei cair a vela, tomado de enorme susto. No escuro da madrugada, a voz seca e velada da velha governanta soou horrendamente fria e descarnada. Seu rosto parecia ainda mais pálido e mórbido sob a luz da vela que trazia em sua mão
- Se não sabe o que há atrás de uma porta fechada é melhor não abrir.
Fiquei alguns instantes assombrado e embaraçado, sustentando com dificuldade o olhar frio da governanta, que não dava sinais de que me deixaria ali sozinho, e depois a segui para fora do porão, envergonhado e ressabiado. A mulher não se dignou a dizer uma palavra a mais sequer além de um ‘boa noite’, seguindo para seu quarto, deixando-me ali sozinho no térreo. Por algum motivo, a casa, à noite, parecia mais fria, com seu teto alto e suas paredes repletas de quadros. Parecia realmente haver algo fantasmagórico impregnado naquele ambiente que não me permitia dormir. Fiz o sinal da cruz ao me ver sozinho de volta em meu quarto, e tentei dormir um pouco. 

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