O Voto (parte I)
- Anda logo
com isso!
- Pera,
porra! Deixa eu ver isso aqui!
- A gente
tem que derrubar logo essa porra. Nado tá enchendo meu cunhão já.
- Eu sei,
frango, mas deixa eu ver o que é isso aqui. Parece um diário.
- E daí? Tu
nem sabe quem escreveu, então o que interessa...
- Cara, eu
gosto de coisa antiga, principalmente coisas que eu sei que já teve um dono.
- Tá, tá
bom. O que tem escrito aí?
O homem
olhou com certo fascínio o caderno bastante velho e meio roído nas bordas, mas
cujas linhas escritas estavam bem preservadas e cheias de uma caligrafia nítida.
- Vamo
trabalhar e depois eu leio com calma – disse o homem, guardando o caderno com
as suas coisas e apanhando a marreta.
Em sua
casa, após jantar e ajudar a filha com o dever de casa, o homem pegou o caderno
e se pôs a ler as páginas. O volume tinha as páginas emboloradas e acastanhadas
pelo tempo. Havia uma data na primeira folha, escrita com esferográfica:
dezembro de 1987. Em seguida, iniciava-se o relato, cujas primeiras palavras de
pronto prenderam o interesse do homem:
“À aqueles
que por ventura lerem estas linhas, peço apenas que não me julguem. E advirto
para que tenham força em seus espíritos. Se você não tem nervos fortes e
facilmente se impressiona, não leia além deste ponto.”
O que relato
aqui – prosseguia a caligrafia firme – não é nada além da verdade, que decidi
narrar para que não a levasse comigo ao túmulo. Sei que não irão crer no que
digo aqui, mas isto não importa. Não mais.
Para minha
sorte, existem ainda boas pessoas no mundo, como Pedro e seu sócio João, que
não apenas confiaram a mim um trabalho honesto como me permitiram me abrigar em
seu restaurante, servindo assim como seu vigilante no turno da noite. Nem todos
tem família após trinta anos de cárcere. Sobretudo os condenados por assassinar
um parente. Não imagino o destino de minha irmã e meu irmão, nem de meus tios e
primos. Trinta anos e sequer uma carta. Mas não os detesto, não os condeno. São
tão inocentes quanto eu mesmo. Na verdade, até mais. Não testemunharam o que eu
testemunhei, e nisso são infinitamente abençoados.
Vai ser
difícil para quem ler estas linhas, cuja tortuosidade eu lamento muitíssimo,
imaginar o inferno na Terra, em vida. Imaginem-se privados por completo de sua
privacidade, de seu conforto, de qualquer coisa agradável, saudável ou
meramente familiar. As celas são mal iluminadas, cheiram à suor, ao ranço de
corpos pouco asseados e à mofo. A comida
é apática e não nos apetece, e é necessário estar constantemente em alerta,
sempre avaliando com quem conversamos e o que dizemos, sob pena de ser
degolado, ou ter o corpo perfurado por chuços, o que talvez seja até pouco
quando lembro do nojo, a dor e a humilhação da sodomização. Trinta anos. Como
se fosse pouco o que descrevi acima, havia ainda a inocência, pois não havia
cometido os crimes dos quais era acusado. Não houve crime, sequer, embora o
caminho percorrido pelo velho – esteja ele onde estiver – seja permeado de
atrocidades, muitas das quais jamais saberemos. Sim, cumpri trinta anos no
inferno livre de culpa. Foi-se minha saúde, foi-se minha vida toda. Não sei
como não se foi junto minha sanidade, depois daquilo que ouvi do velho e, pior,
daquilo que pude ver com meus próprios olhos. A verdade sobre a morte do velho,
se é que de fato morreu na ocasião, é simplesmente impossível de ser tida como
tal por quem não houvesse visto tudo com seus próprios olhos ou não houvesse
testemunhado em suas vidas alguma forma de horror igualmente inenarrável.
Ninguém jamais acreditaria em nenhuma palavra minha e, de qualquer forma, eu
ainda hoje não sei o que poderia ser pior que ter assistido àquilo que assisti
naquela noite.
Passamos o
fim de semana no interior, comemorando o aniversário de 107 anos de meu
tio-bisavô, Mathias. Nenhum de nós acreditava que uma pessoa pudesse viver
tanto tempo. O velho era um homem muito rico, muito gentil e muito generoso,
com uma vasta cabeleira branca e mãos grandes e habilidosas. Da família toda, a
pessoa que lhe era mais apegada era eu, e aquilo não havia mudado desde
criança. Costumávamos cavalgar juntos por suas terras, tanger gado, pescar no
riacho da fazenda. Mas muito de seu vigor ficara no passado, e em nossas
ultimas visitas ficamos somente conversando sobre outros tempos, estórias de
quando nem meus pais eram nascidos. Ficávamos nós dois por horas assim noite
adentro, e não foi diferente naquela ultima festa.
Quando, no
final da tarde do domingo, minha família se preparou para ir embora, o velho me
pediu para ficar, pois tinha algumas coisas a resolver e precisaria de minha
ajuda, além do que, minha presença naquela casa imensa seria boa para alegra-lo
e melhorar-lhe o ânimo, pois ninguém tem a melhor saúde naquela idade. Tendo me
separado fazia pouco tempo de minha noiva e recentemente demitido, não vi
problemas, embora preferisse ir para casa e seguir procurando um novo trabalho
no dia seguinte.
Já naquela
primeira noite, percebi algo estranho. Bastante discreto, devo dizer, e por
isso mesmo não me causara de pronto nenhum grande alarde. Não sei se o olhar
gelado e reticente da sua governanta – uma senhora miúda, pálida como uma
convalescente e de cabelos brancos – ou algo mais sutil, como o frio da
madrugada se infiltrando pelas frestas das portas e janelas no silencio
sepulcral daquela casa enorme. Não sei dizer ao certo o que, naquela noite, me
causou tão soturna sensação.
No dia
seguinte me senti envergonhado e meio desconfortável por acordar um tanto
tarde. Uma sensação inquietante de desconforto em estar naquela casa grande e
opulenta quando devia estar pondo minha vida de volta nos eixos. Desci à
cozinha, onde a governanta me respondeu com bastante secura ao meu bom dia,
retirando-se logo em seguida para a área de serviço, deixando-me com uma
persistente má sensação.
Fui ao jardim à
procura do velho Mathias. Ainda era o mesmo jardim no qual brincara bastante em
minha infância, mas somente naquela manhã pude observar o detalhe das estátuas.
Sempre estiveram ali e sempre as vi, solenes e esculpidas com extremo esmero.
Sete. Sete anjos. Cada um portando uma espada, com uma expressão grave em seus
rostos de pedra, numa pose de quem está pronto a repelir algum inimigo. Todas
voltadas para o muro principal da mansão. A inquietação, suave e persistente,
agitando-se em minha cabeça. E ali, pensativo em sua cadeira de rodas, estava o
velho. Parecia olhar para o vazio, como se olhasse para outros dias. Fui até
onde estava e ficamos ali um bom tempo a conversar, e mesmo sem esconder sua
saúde frágil, vi o ânimo do velho melhorar bastante, embora não me deixasse a
impressão de que escondia umatensão
qualquer.
Naquela
noite, entediado e insone, me pus a vagar pela casa, com uma vela na mão. Notei
durante o dia uma certa melancolia e uma certa decrepitude na suntuosidade
daquela mansão, que já vira dias melhores e de maiores alegrias e que então
abrigava apenas um velho, a taciturna governanta e uma bonita enfermeira que
cuidava do velho fazia alguns meses. Se fosse mais esperto, e minha vida
estivesse mais em ordem naqueles dias, certamente teria dado mais atenção à
minha intuição, aos avisos que recebi, pois à noite, uma atmosfera de
estranheza que eu jamais soube explicar se apossava do lugar, como uma teia de
sombra e silencio escorrendo dos cantos e das frestas, exalando dos quadros
antigos e da mobília secular. Em minha inspeção noturna pela casa, na qual
insisti somente para me provar que não
havia nada o que temer ali, deparei com uma porta ao fundo do porão,
lembrando-me naquele momento que jamais, desde que podia me lembrar, havia ido
naquele cômodo. Senti, pela primeira vez, um ímpeto verdadeiro de ir adiante e
ver o que havia ali dentro. Hesitei por alguns instantes, sentindo aquela
atmosfera se impregnar em meus poros. Podia jurar que alguém estava me
observando com olhos inamistosos. Meu coração pareceu disparar com um súbito e
inexplicável temor quando estendi a mão. Mas quase deixei cair a vela, tomado
de enorme susto. No escuro da madrugada, a voz seca e velada da velha
governanta soou horrendamente fria e descarnada. Seu rosto parecia ainda mais
pálido e mórbido sob a luz da vela que trazia em sua mão
- Se não
sabe o que há atrás de uma porta fechada é melhor não abrir.
Fiquei
alguns instantes assombrado e embaraçado, sustentando com dificuldade o olhar
frio da governanta, que não dava sinais de que me deixaria ali sozinho, e depois
a segui para fora do porão, envergonhado e ressabiado. A mulher não se dignou a
dizer uma palavra a mais sequer além de um ‘boa noite’, seguindo para seu
quarto, deixando-me ali sozinho no térreo. Por algum motivo, a casa, à noite,
parecia mais fria, com seu teto alto e suas paredes repletas de quadros. Parecia
realmente haver algo fantasmagórico impregnado naquele ambiente que não me
permitia dormir. Fiz o sinal da cruz ao me ver sozinho de volta em meu quarto,
e tentei dormir um pouco.
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