Na manhã
seguinte, não totalmente refeito daquela noite quase insone, me dirigi à
varanda do primeiro andar para do alto admirar o jardim, e só então percebi
algo. Senti meu sangue gelar por uma fração de segundo diante a estranha
impressão que me causou a visão das estátuas dos anjos vistas dali. Estavam
todas de costas para a entrada da casa, voltadas para o muro, para o portão, como
que aguardando um intruso muito indesejado.
Aquela visão, por algum motivo, me perturbou ao extremo, como se de
repente algo oculto me houvesse sido revelado numa estranha epifania. Os anjos
não estavam voltados para o muro ou o portão, mas, eu podia ver agora, para
algo de fora, além, algo de longe. Para o leste.
Senti um breve calafrio a me correr o corpo e, de repente, me peguei a me perguntar
o que estariam aqueles anjos prontos a enfrentar e repelir.
- Bom dia,
rapaz!
Naquele
instante, mesmo a voz suave do velho me fez retesar o corpo num arrepio de
susto.
- Desça
para tomar café, rapaz. Vou precisar de alguma ajuda hoje.
Afaguei os
cabelos brancos do velho e me dirigi à escada, com uma má sensação a me seguir
os passos. Uma tensão fria e insidiosa que parecia vir de lugar nenhum e sem
razão aparente. Ainda me causava estranheza os anjos de pedra com seus rostos
graves e de armas em punho a montar guarda. Contra o que?
Encontrei a
cozinha vazia, onde fiz uma refeição sem muito apetite e, após algumas voltas
pela casa vazia, me dei conta que a governanta não estava em casa.
- Aquela
velha rabugenta foi visitar a filha. Já
que você está aqui, resolveu passar uns dias por lá e acho que volta em uma ou
duas semanas. Foi bom mesmo – disse o velho com uma ponta de riso. – Já
estávamos dando nos nervos um do outro.
O dia
correu preguiçoso, permeado de um silencio e uma tranquilidade que me fustigaram
os nervos como um relho.
Durante o
jantar o velho anunciou que eu deveria leva-lo no dia seguinte em Baía do Sono,
uma pequena cidade costeira da qual eu jamais ouvira falar. Concordei de
pronto, pois não via a hora de sair daquela casa que me dava náuseas e arrepios,
e a ideia de sair dali me trouxe algum ânimo. Jantamos com vontade, conversando
amenidades, e fomos dormir cedo, pois iríamos madrugar na manhã seguinte.
O que me
lembro é que aquela foi a pior noite que passei naquela casa. Quando finalmente
consegui conciliar o sono naquele quarto frio e cheirando a umidade, tive
estranhos pesadelos. Via, sob uma luz cinzenta penumbrosa, grandes ondas
geladas a arrebentarem contra um grande muro de pedra negra, e no sonho meus
nervos se arrepiavam de pavor ao ouvir um rugido trovejante que parecia vir de
algum ponto às minhas costas, como o urro de alguma besta colossal. Despertei
num salto daquele horror, sentindo-me aterrorizado e ligeiramente febril, não
conseguindo voltar a dormir. Ainda podia sentir minhas narinas arderem com a
maresia gelada e o tenebroso urro colossal a ecoar em minha mente. Apanhei uma
vela em minha cabeceira, ainda trêmulo, e me pus a andar pela casa. Não
conseguia, por nada no mundo, permanecer deitado naquele quarto. Vagando pela
casa, cada vez que atravessava aqueles corredores e salas de teto alto repletas
de quadros, mais me sentia preso num estranho sonho de sombras onde algo
aterrorizante parecia espreitar. Os retratos que pareciam me olhar com censura
e severidade na semiescuridão e as paisagens nas telas pareciam janelas para
outros mundos.
Não
resistindo ao impulso, me dirigi ao porão e parei diante da porta fechada ao
fundo, tal com o na noite anterior. Estendi minha mão novamente e pensei,
naquele instante, em voltar ao quarto e tentar dormir mais uma vez. Estremeci
por um instante e, num movimento brusco, abri a porta. O que encontrei ali
dentro me gelou o sangue de imediato, e eu desafio qualquer pessoa mentalmente
sã a reagir com indiferença diante daquilo que havia ali dentro. A porta dava
para um minúsculo cômodo que não devia medir mais de dois metros cada parede e
mais parecia uma pequena gruta. As paredes eram cruas, sem acabamento além de uma
grosseira pintura azul escura. Ao fundo, sobre um pequeno altar e cercada de
velas acesas, havia uma sinistra escultura em pedra escura representando a
cabeça de um ser aberrante ou alguma entidade infernal. Lembrava um dragão ou
uma tenebrosa serpente, de olhos perversos e a bocarra repuxada num esgar
demoníaco, exibindo os dentes afiados. A escultura estava banhada em sangue
recente, que formava fios brilhantes de aspecto viscoso entre as velas escuras
acesas ao seu redor. Pelos restos de sangue e parafina ali acumulados, aquele
tenebroso ídolo esteve ali havia muito tempo, sendo regularmente regado a
sangue e tendo as velas renovadas. Dei um passo atrás, horrorizado com o ar
carregado e odioso que emanava daquela escultura grotesca e sombria. A face
daquela besta, mesmo esculpida em pedra, parecia viva e animada, como que habitada
por algum espirito amaldiçoado e, por um breve momento cheguei a imaginar que rosnava
ameaçador contra mim. Quase podia ler seu olhar demoníaco e ouvir sua voz
blasfema ordenando que me retirasse. Trêmulo, cheio de horror e repulsa, me apressei
em fechar aquela porta que eu jamais devia ter aberto me afastar dali. O que
uma coisa como aquela estivera fazendo na casa do velho todo aquele tempo, eu
me perguntava. Apostaria meu braço direito como ninguém sabia o que havia atrás
daquela porta, e me perguntava quais outras coisas meu tio poderia esconder.
Imediatamente lembrei dos anjos no jardim, voltados cheios de ameaça para o
leste. Um arrepio me passou o corpo. Medo. Uma sensação assombrada de mau
presságio. Subi apressado ao meu quarto, observando que a manhã já ia
despontando no horizonte. No leste.
Despertei
num salto ao tilintar persistente do despertador. O velho Mathias já estava
pronto a me aguardar da sala, onde ouvia sossegado Cânone em Ré.
- Preciso
que desça ao porão e busque uma caixa para mim, filho – disse o velho acima dos
violinos e violoncelos. – Uma caixa de madeira lá no fundo.
Desci ao
porão e trouxe de lá a pesada caixa até o carro. Trancamos a casa e saímos
ainda na penumbra da manhã. Enquanto preparava as coisas para viajar, não
consegui olhar o velho nos olhos e creio que não consegui esconder o quanto
estava perturbado. Via agora meu tio com outros olhos. A imagem do velho gentil
e companheiro parecia agora somente uma máscara a esconder um estranho. Um
estranho que adorava em segredo uma entidade pagã, que construiu sua casa com
anjos montando guarda contra... contra o
que?
- O que há,
filho? Dormiu mal? Está com olheiras terríveis – disse o velho com seu sorriso
amável que só então percebi ser assustador e dissimulado. Por um momento tive
pavor da sua presença e senti vontade de deixa-lo ali onde estava e fugir para
longe daquele lugar, mas aquela estranheza cedeu ao lembrar-me de que o velho
sempre fora um bom homem para mim e toda a família, e nada justificaria aquela
minha desconfiança. Naquele momento, enquanto girava a chave na ignição e
tentava me convencer de que estava me assustando á toa, não conseguia me sentir
totalmente tolo. Não conseguia desviar minha mente dos sete anjos montando
guarda e do horrendo ídolo escondido no porão, não conseguia me livrar da má
sensação que aquela casa me causou naqueles dias, e nem do pesadelo daquela
noite, que naquele momento me voltou á mente fazendo meu sangue gelar.