segunda-feira, 16 de setembro de 2013

O Voto (parte II)

Na manhã seguinte, não totalmente refeito daquela noite quase insone, me dirigi à varanda do primeiro andar para do alto admirar o jardim, e só então percebi algo. Senti meu sangue gelar por uma fração de segundo diante a estranha impressão que me causou a visão das estátuas dos anjos vistas dali. Estavam todas de costas para a entrada da casa, voltadas para o muro, para o portão, como que aguardando um intruso muito indesejado.  Aquela visão, por algum motivo, me perturbou ao extremo, como se de repente algo oculto me houvesse sido revelado numa estranha epifania. Os anjos não estavam voltados para o muro ou o portão, mas, eu podia ver agora, para algo de fora, além, algo de longe. Para o leste. Senti um breve calafrio a me correr o corpo e, de repente, me peguei a me perguntar o que estariam aqueles anjos prontos a enfrentar e repelir.
- Bom dia, rapaz!
Naquele instante, mesmo a voz suave do velho me fez retesar o corpo num arrepio de susto.
- Desça para tomar café, rapaz. Vou precisar de alguma ajuda hoje.
Afaguei os cabelos brancos do velho e me dirigi à escada, com uma má sensação a me seguir os passos. Uma tensão fria e insidiosa que parecia vir de lugar nenhum e sem razão aparente. Ainda me causava estranheza os anjos de pedra com seus rostos graves e de armas em punho a montar guarda. Contra o que?
Encontrei a cozinha vazia, onde fiz uma refeição sem muito apetite e, após algumas voltas pela casa vazia, me dei conta que a governanta não estava em casa.
- Aquela velha rabugenta foi visitar a filha.  Já que você está aqui, resolveu passar uns dias por lá e acho que volta em uma ou duas semanas. Foi bom mesmo – disse o velho com uma ponta de riso. – Já estávamos dando nos nervos um do outro.
O dia correu preguiçoso, permeado de um silencio e uma tranquilidade que me fustigaram os nervos como um relho.
Durante o jantar o velho anunciou que eu deveria leva-lo no dia seguinte em Baía do Sono, uma pequena cidade costeira da qual eu jamais ouvira falar. Concordei de pronto, pois não via a hora de sair daquela casa que me dava náuseas e arrepios, e a ideia de sair dali me trouxe algum ânimo. Jantamos com vontade, conversando amenidades, e fomos dormir cedo, pois iríamos madrugar na manhã seguinte.
O que me lembro é que aquela foi a pior noite que passei naquela casa. Quando finalmente consegui conciliar o sono naquele quarto frio e cheirando a umidade, tive estranhos pesadelos. Via, sob uma luz cinzenta penumbrosa, grandes ondas geladas a arrebentarem contra um grande muro de pedra negra, e no sonho meus nervos se arrepiavam de pavor ao ouvir um rugido trovejante que parecia vir de algum ponto às minhas costas, como o urro de alguma besta colossal. Despertei num salto daquele horror, sentindo-me aterrorizado e ligeiramente febril, não conseguindo voltar a dormir. Ainda podia sentir minhas narinas arderem com a maresia gelada e o tenebroso urro colossal a ecoar em minha mente. Apanhei uma vela em minha cabeceira, ainda trêmulo, e me pus a andar pela casa. Não conseguia, por nada no mundo, permanecer deitado naquele quarto. Vagando pela casa, cada vez que atravessava aqueles corredores e salas de teto alto repletas de quadros, mais me sentia preso num estranho sonho de sombras onde algo aterrorizante parecia espreitar. Os retratos que pareciam me olhar com censura e severidade na semiescuridão e as paisagens nas telas pareciam janelas para outros mundos.
Não resistindo ao impulso, me dirigi ao porão e parei diante da porta fechada ao fundo, tal com o na noite anterior. Estendi minha mão novamente e pensei, naquele instante, em voltar ao quarto e tentar dormir mais uma vez. Estremeci por um instante e, num movimento brusco, abri a porta. O que encontrei ali dentro me gelou o sangue de imediato, e eu desafio qualquer pessoa mentalmente sã a reagir com indiferença diante daquilo que havia ali dentro. A porta dava para um minúsculo cômodo que não devia medir mais de dois metros cada parede e mais parecia uma pequena gruta. As paredes eram cruas, sem acabamento além de uma grosseira pintura azul escura. Ao fundo, sobre um pequeno altar e cercada de velas acesas, havia uma sinistra escultura em pedra escura representando a cabeça de um ser aberrante ou alguma entidade infernal. Lembrava um dragão ou uma tenebrosa serpente, de olhos perversos e a bocarra repuxada num esgar demoníaco, exibindo os dentes afiados. A escultura estava banhada em sangue recente, que formava fios brilhantes de aspecto viscoso entre as velas escuras acesas ao seu redor. Pelos restos de sangue e parafina ali acumulados, aquele tenebroso ídolo esteve ali havia muito tempo, sendo regularmente regado a sangue e tendo as velas renovadas. Dei um passo atrás, horrorizado com o ar carregado e odioso que emanava daquela escultura grotesca e sombria. A face daquela besta, mesmo esculpida em pedra, parecia viva e animada, como que habitada por algum espirito amaldiçoado e, por um breve momento cheguei a imaginar que rosnava ameaçador contra mim. Quase podia ler seu olhar demoníaco e ouvir sua voz blasfema ordenando que me retirasse. Trêmulo, cheio de horror e repulsa, me apressei em fechar aquela porta que eu jamais devia ter aberto me afastar dali. O que uma coisa como aquela estivera fazendo na casa do velho todo aquele tempo, eu me perguntava. Apostaria meu braço direito como ninguém sabia o que havia atrás daquela porta, e me perguntava quais outras coisas meu tio poderia esconder. Imediatamente lembrei dos anjos no jardim, voltados cheios de ameaça para o leste. Um arrepio me passou o corpo. Medo. Uma sensação assombrada de mau presságio. Subi apressado ao meu quarto, observando que a manhã já ia despontando no horizonte. No leste.
Despertei num salto ao tilintar persistente do despertador. O velho Mathias já estava pronto a me aguardar da sala, onde ouvia sossegado Cânone em Ré.
- Preciso que desça ao porão e busque uma caixa para mim, filho – disse o velho acima dos violinos e violoncelos. – Uma caixa de madeira lá no fundo.
Desci ao porão e trouxe de lá a pesada caixa até o carro. Trancamos a casa e saímos ainda na penumbra da manhã. Enquanto preparava as coisas para viajar, não consegui olhar o velho nos olhos e creio que não consegui esconder o quanto estava perturbado. Via agora meu tio com outros olhos. A imagem do velho gentil e companheiro parecia agora somente uma máscara a esconder um estranho. Um estranho que adorava em segredo uma entidade pagã, que construiu sua casa com anjos montando guarda contra... contra o que?

- O que há, filho? Dormiu mal? Está com olheiras terríveis – disse o velho com seu sorriso amável que só então percebi ser assustador e dissimulado. Por um momento tive pavor da sua presença e senti vontade de deixa-lo ali onde estava e fugir para longe daquele lugar, mas aquela estranheza cedeu ao lembrar-me de que o velho sempre fora um bom homem para mim e toda a família, e nada justificaria aquela minha desconfiança. Naquele momento, enquanto girava a chave na ignição e tentava me convencer de que estava me assustando á toa, não conseguia me sentir totalmente tolo. Não conseguia desviar minha mente dos sete anjos montando guarda e do horrendo ídolo escondido no porão, não conseguia me livrar da má sensação que aquela casa me causou naqueles dias, e nem do pesadelo daquela noite, que naquele momento me voltou á mente fazendo meu sangue gelar.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

O Voto (parte I)

- Anda logo com isso!
- Pera, porra! Deixa eu ver isso aqui!
- A gente tem que derrubar logo essa porra. Nado tá enchendo meu cunhão já.
- Eu sei, frango, mas deixa eu ver o que é isso aqui. Parece um diário.
- E daí? Tu nem sabe quem escreveu, então o que interessa...
- Cara, eu gosto de coisa antiga, principalmente coisas que eu sei que já teve um dono.
- Tá, tá bom. O que tem escrito aí?
O homem olhou com certo fascínio o caderno bastante velho e meio roído nas bordas, mas cujas linhas escritas estavam bem preservadas e cheias de uma caligrafia nítida.
- Vamo trabalhar e depois eu leio com calma – disse o homem, guardando o caderno com as suas coisas e apanhando a marreta.
Em sua casa, após jantar e ajudar a filha com o dever de casa, o homem pegou o caderno e se pôs a ler as páginas. O volume tinha as páginas emboloradas e acastanhadas pelo tempo. Havia uma data na primeira folha, escrita com esferográfica: dezembro de 1987. Em seguida, iniciava-se o relato, cujas primeiras palavras de pronto prenderam o interesse do homem:
“À aqueles que por ventura lerem estas linhas, peço apenas que não me julguem. E advirto para que tenham força em seus espíritos. Se você não tem nervos fortes e facilmente se impressiona, não leia além deste ponto.”
O que relato aqui – prosseguia a caligrafia firme – não é nada além da verdade, que decidi narrar para que não a levasse comigo ao túmulo. Sei que não irão crer no que digo aqui, mas isto não importa. Não mais.
Para minha sorte, existem ainda boas pessoas no mundo, como Pedro e seu sócio João, que não apenas confiaram a mim um trabalho honesto como me permitiram me abrigar em seu restaurante, servindo assim como seu vigilante no turno da noite. Nem todos tem família após trinta anos de cárcere. Sobretudo os condenados por assassinar um parente. Não imagino o destino de minha irmã e meu irmão, nem de meus tios e primos. Trinta anos e sequer uma carta. Mas não os detesto, não os condeno. São tão inocentes quanto eu mesmo. Na verdade, até mais. Não testemunharam o que eu testemunhei, e nisso são infinitamente abençoados.
Vai ser difícil para quem ler estas linhas, cuja tortuosidade eu lamento muitíssimo, imaginar o inferno na Terra, em vida. Imaginem-se privados por completo de sua privacidade, de seu conforto, de qualquer coisa agradável, saudável ou meramente familiar. As celas são mal iluminadas, cheiram à suor, ao ranço de corpos pouco asseados e à  mofo. A comida é apática e não nos apetece, e é necessário estar constantemente em alerta, sempre avaliando com quem conversamos e o que dizemos, sob pena de ser degolado, ou ter o corpo perfurado por chuços, o que talvez seja até pouco quando lembro do nojo, a dor e a humilhação da sodomização. Trinta anos. Como se fosse pouco o que descrevi acima, havia ainda a inocência, pois não havia cometido os crimes dos quais era acusado. Não houve crime, sequer, embora o caminho percorrido pelo velho – esteja ele onde estiver – seja permeado de atrocidades, muitas das quais jamais saberemos. Sim, cumpri trinta anos no inferno livre de culpa. Foi-se minha saúde, foi-se minha vida toda. Não sei como não se foi junto minha sanidade, depois daquilo que ouvi do velho e, pior, daquilo que pude ver com meus próprios olhos. A verdade sobre a morte do velho, se é que de fato morreu na ocasião, é simplesmente impossível de ser tida como tal por quem não houvesse visto tudo com seus próprios olhos ou não houvesse testemunhado em suas vidas alguma forma de horror igualmente inenarrável. Ninguém jamais acreditaria em nenhuma palavra minha e, de qualquer forma, eu ainda hoje não sei o que poderia ser pior que ter assistido àquilo que assisti naquela noite.
Passamos o fim de semana no interior, comemorando o aniversário de 107 anos de meu tio-bisavô, Mathias. Nenhum de nós acreditava que uma pessoa pudesse viver tanto tempo. O velho era um homem muito rico, muito gentil e muito generoso, com uma vasta cabeleira branca e mãos grandes e habilidosas. Da família toda, a pessoa que lhe era mais apegada era eu, e aquilo não havia mudado desde criança. Costumávamos cavalgar juntos por suas terras, tanger gado, pescar no riacho da fazenda. Mas muito de seu vigor ficara no passado, e em nossas ultimas visitas ficamos somente conversando sobre outros tempos, estórias de quando nem meus pais eram nascidos. Ficávamos nós dois por horas assim noite adentro, e não foi diferente naquela ultima festa.
Quando, no final da tarde do domingo, minha família se preparou para ir embora, o velho me pediu para ficar, pois tinha algumas coisas a resolver e precisaria de minha ajuda, além do que, minha presença naquela casa imensa seria boa para alegra-lo e melhorar-lhe o ânimo, pois ninguém tem a melhor saúde naquela idade. Tendo me separado fazia pouco tempo de minha noiva e recentemente demitido, não vi problemas, embora preferisse ir para casa e seguir procurando um novo trabalho no dia seguinte.
Já naquela primeira noite, percebi algo estranho. Bastante discreto, devo dizer, e por isso mesmo não me causara de pronto nenhum grande alarde. Não sei se o olhar gelado e reticente da sua governanta – uma senhora miúda, pálida como uma convalescente e de cabelos brancos – ou algo mais sutil, como o frio da madrugada se infiltrando pelas frestas das portas e janelas no silencio sepulcral daquela casa enorme. Não sei dizer ao certo o que, naquela noite, me causou tão soturna sensação.
No dia seguinte me senti envergonhado e meio desconfortável por acordar um tanto tarde. Uma sensação inquietante de desconforto em estar naquela casa grande e opulenta quando devia estar pondo minha vida de volta nos eixos. Desci à cozinha, onde a governanta me respondeu com bastante secura ao meu bom dia, retirando-se logo em seguida para a área de serviço, deixando-me com uma persistente má sensação.
Fui ao jardim à procura do velho Mathias. Ainda era o mesmo jardim no qual brincara bastante em minha infância, mas somente naquela manhã pude observar o detalhe das estátuas. Sempre estiveram ali e sempre as vi, solenes e esculpidas com extremo esmero. Sete. Sete anjos. Cada um portando uma espada, com uma expressão grave em seus rostos de pedra, numa pose de quem está pronto a repelir algum inimigo. Todas voltadas para o muro principal da mansão. A inquietação, suave e persistente, agitando-se em minha cabeça. E ali, pensativo em sua cadeira de rodas, estava o velho. Parecia olhar para o vazio, como se olhasse para outros dias. Fui até onde estava e ficamos ali um bom tempo a conversar, e mesmo sem esconder sua saúde frágil, vi o ânimo do velho melhorar bastante, embora não me deixasse a impressão de que escondia umatensão qualquer.
Naquela noite, entediado e insone, me pus a vagar pela casa, com uma vela na mão. Notei durante o dia uma certa melancolia e uma certa decrepitude na suntuosidade daquela mansão, que já vira dias melhores e de maiores alegrias e que então abrigava apenas um velho, a taciturna governanta e uma bonita enfermeira que cuidava do velho fazia alguns meses. Se fosse mais esperto, e minha vida estivesse mais em ordem naqueles dias, certamente teria dado mais atenção à minha intuição, aos avisos que recebi, pois à noite, uma atmosfera de estranheza que eu jamais soube explicar se apossava do lugar, como uma teia de sombra e silencio escorrendo dos cantos e das frestas, exalando dos quadros antigos e da mobília secular. Em minha inspeção noturna pela casa, na qual insisti somente para me provar que não havia nada o que temer ali, deparei com uma porta ao fundo do porão, lembrando-me naquele momento que jamais, desde que podia me lembrar, havia ido naquele cômodo. Senti, pela primeira vez, um ímpeto verdadeiro de ir adiante e ver o que havia ali dentro. Hesitei por alguns instantes, sentindo aquela atmosfera se impregnar em meus poros. Podia jurar que alguém estava me observando com olhos inamistosos. Meu coração pareceu disparar com um súbito e inexplicável temor quando estendi a mão. Mas quase deixei cair a vela, tomado de enorme susto. No escuro da madrugada, a voz seca e velada da velha governanta soou horrendamente fria e descarnada. Seu rosto parecia ainda mais pálido e mórbido sob a luz da vela que trazia em sua mão
- Se não sabe o que há atrás de uma porta fechada é melhor não abrir.
Fiquei alguns instantes assombrado e embaraçado, sustentando com dificuldade o olhar frio da governanta, que não dava sinais de que me deixaria ali sozinho, e depois a segui para fora do porão, envergonhado e ressabiado. A mulher não se dignou a dizer uma palavra a mais sequer além de um ‘boa noite’, seguindo para seu quarto, deixando-me ali sozinho no térreo. Por algum motivo, a casa, à noite, parecia mais fria, com seu teto alto e suas paredes repletas de quadros. Parecia realmente haver algo fantasmagórico impregnado naquele ambiente que não me permitia dormir. Fiz o sinal da cruz ao me ver sozinho de volta em meu quarto, e tentei dormir um pouco. 

sexta-feira, 11 de novembro de 2011


Amantes

Ela trancou a porta com gestos delicados e pausados. Os dedos macios de unhas bem cuidadas tocando com suavidade o metal frio. O som metálico e fluido da fechadura acionada soou como um beijo de boa noite ou um pedido de silêncio com uma carga minuciosamente calculada de erotismo dissimulado. Deteve-se por uns breves instantes diante da porta fechada absorvendo o silêncio que apenas o discreto zumbido do refrigerador rompia. Seu perfume discreto abrandando o ar parado como uma extensão de sua pessoa a tatear pela sala com mãos afetuosas e ousadas. Estavam a sós, em fim. Mordeu de leve o lábio inferior vermelho e brilhante, como uma cereja fresca. O dorso de um dos pés apoiado sobre o calcanhar do outro numa pose divertida e romântica.  Uma expressão de divertida transgressão e luxúria iminente. Um gesto tão seu desde a sua infância, quando cometia alguma travessura longe dos olhos vigilantes dos adultos. Ou, na adolescência, quando se imaginava tomada de arroubo por algum belo jovem que a beijasse com força e a tocasse como um homem toca uma mulher, ou quando olhava com uma discrição felina as outras meninas despidas no vestiário da escola.
Virou-se, por fim, girando sobre as pontas dos pés. Um brilho terno e quente estampado nos olhos escuros e vivos. Medindo os passos, sem pressa e com a leveza de um elfo, aproximou-se dele em silêncio. Contemplou demoradamente o rosto pálido e viril que ali, relaxado e de olhos fechados, parecia ter algo de delicado e infantil que o tornava ainda mais especial. Os lábios bem desenhados, o rosto anguloso perfeitamente escanhoado, os cabelos muito negros como os seus. Poderiam facilmente passar por irmãos. Olhava-o com ternura enquanto deslizada os dedos macios pelo seu rosto e seus lábios. Ele não se moveu. Continuava tão imperturbável quanto a expressão de absoluta placidez estampada em seu rosto, e ela quase foi às lágrimas. Iria perde-lo em breve, ela sabia. Apenas em suas lembranças o teria para si após aquela noite. Tão belo quanto efêmero. Debruçou-se sobre ele lentamente, fechando os olhos para que parasse o tempo ao redor deles, e o beijou com toda a ternura que poderia sentir. Os lábios macios que a sua língua provava deliciada. Sentia ceder a ternura, substituída por uma crescente excitação. Despiu-se languidamente sem desviar os olhos dele. O cheiro de sua pele quente e de roupa íntima fluindo no ar como partículas de uma sensualidade delicada e, por isto mesmo, muito poderosa. Tomou as mãos firmes e másculas entre as suas. Sentiu os dedos fortes com suas mão delicadas, e os levou ao seu rosto, extasiada por aquele toque. Sentiu com a língua e com os lábios cada um deles como se provasse um doce. Levou aquela mão aos seios, pressionando-a contra o volume macio e os mamilos intumescidos e sensíveis. Gemeu baixinho em falsete, ofegante de excitação enquanto sentia-se ser acariciada. Levou a mão de dedos firmes por entre suas coxas. A pele macia arrepiando-se ao toque delicado e vigoroso ao um mesmo tempo. Fechou os olhos, tomada de um prazer crescente e pulsante que lhe subia pelo corpo sob o movimento ritmado de seus quadris. A boca aberta numa expressão quase dolorosa, de tão intenso.
Numa seqüência de movimentos ágeis e lascivos, deitou-se sobre ele. Roçava contra ele todo o seu corpo despido. Tomou-lhe o rosto entre as mãos, beijando-o com voracidade e volúpia, destituída de toda a ternura que antes pontuava cada um de seus gestos. Apenas a luxúria que a possuía como um demônio. Sentia em sua língua quente o sabor da pele enquanto lhe lambia o pescoço, os mamilos, o peito largo e forte. Os movimentos vigorosos dos quadris contra os dele. Outra vez o calor e o prazer crescendo em seu corpo. Desta vez com mais intensidade. Cada músculo, cada nervo, cada célula sua exalava sexo. Pronta para o choque da poderosa onda que vinha por todo o seu corpo enquanto se movia freneticamente e ofegava entre gemidos extasiados. O suor a porejar-lhe os seios, a testa, as costas. Fechou os olhos e deixou que o corpo sentisse cada espasmo do avassalador prazer que chegava, por fim. A deliciosa dormência que aos poucos tomava músculos e ossos enquanto respirava profundamente. Todo o corpo relaxando devagar, como as centelhas coloridas dos fogos-de-artifício placidamente caindo após a explosão. De olhos fechados, restabelecia seu ritmo enquanto sentia com as mãos os músculos potentes sob seu corpo. Olhou mais uma vez o rosto belo e tranqüilo. A ternura de volta ao seu olhar e aos seus gestos enquanto gotas de suor lhe escorriam graciosamente pelo nariz. Inclinou-se mais uma vez, ainda um pouco ofegante, e o beijou com a paixão da mais adorável das amantes.
Afastou-se dele, afinal, muito a contragosto. Não suportava a idéia do fim. Era sempre assim, tão fugaz, tão febril. Nunca mais que um breve encontro, apenas.
Tornou a vestir-se tão languidamente quanto havia se despido. Os olhos ainda fixos no seu amante. Acariciou com melancolia os cabelos negros e grossos. Lavou as mãos e o rosto meticulosamente, como convinha. Tomou a prancheta e a caneta, organizando alguns papéis sobre a mesa ao lado e dirigiu-se até a porta com os mesmos movimentos delicados de felina, destrancando-a com cuidado, como que para não o despertar. Recolocou o lençol branco sobre o corpo, checou os materiais e equipamentos da autópsia e chamou o auxiliar de necropsias para ajudar com o cadáver prostrado na mesa de aço.


quinta-feira, 27 de outubro de 2011


O escuro

Ele abriu os olhos aos poucos, com dificuldade. Alguma coisa espessa e ressacada que ele imaginou ser sangue colava suas pálpebras e lhe irritava e feria os olhos. Sua cabeça latejava dolorosamente como que golpeada por dentro com um martelo, seus olhos doíam por dentro, no fundo das órbitas. Sentia as narinas arderem doloridas, inundadas de sangue que lhe escorria da garganta para a boca com um sabor desagradável e familiar. Os ouvidos pareciam tampados e doloridos. Desnorteado como estava, custou um pouco a perceber que estava dependurado pelos pés. Forçou um pouco sua mente, a muito custo, para tentar recordar-se de como fora ali parar. A floresta. Sim, estava na floresta, catando lenha para a fogueira. Havia chegado logo ao amanhecer e montado a barraca ao lado de um penhasco pedregoso junto a uma volumosa corredeira. Um lugar bem aprazível, de aspecto selvagem e intocado, embrenhado no fundo da floresta algumas horas a pé da trilha principal.
Fungou o sangue nas narinas. A boca e a garganta enchendo-se da espessa e repulsiva mistura de secreções, que tentou inutilmente engolir para aliviar a sensação de seca na garganta. Tentou cuspir, mas tudo que conseguiu foi deixar que escorresse lentamente pela sua face o fluido quente e viscoso. Sua cabeça doeu mais forte, pesada como se feita de chumbo.
Havia caminhado longamente durante o dia para melhor explorar o local, admirado com as imensas e frondosas árvores de ásperas cascas cobertas de musgo, catando os gravetos que ia encontrando para deles fazer sua fogueira. Retornou ao acampamento algumas horas depois com o suor a lhe escorrer pela testa e as mãos arranhadas e sujas. O cheiro da floresta a lhe impregnar as roupas. Preparou seu modesto almoço e se pôs a contemplar a vista do imponente penhasco a sua frente. Uma névoa suave parecia cobrir a vasta floresta que se estendia lá embaixo. Ao longe, grandes montanhas de ar sombrio se erguiam majestosas e inescrutáveis. Dava a impressão de estar num filme qualquer sobre mundos perdidos e desconhecidos, com todas aquelas árvores imensas.
À noite, vencido pelo cansaço e pelo aconchegante frio que ia chegando, recolheu-se a sua barraca, metendo-se sob o cobertor e adormecendo logo em seguida. O som das criaturas noturnas chamando hipnoticamente o sono.
Passou uma rápida vista pelo lugar em que estava, movendo com dificuldade a cabeça. O pescoço rígido e dolorido parecia não obedecer a sua vontade. Viu-se envolto numa penumbra vermelha e quente, abafada. O ar era sufocante, cheio de uma fumaça pesada e oleosa que se desprendia de uma pequena fogueira onde bruxuleavam chamas vermelhas cuja luz projetava estranhas sombras nas paredes pedregosas incrustadas de raízes. Teve a impressão de enxergar vários ossos, frascos imundos, rústicas facas e cutelos adornados com ossos e figuras demoníacas sobre uma tosca mesa bem próxima de onde estava. O lugar era estava uma absoluta mixórdia e impregnado de um fedor nauseabundo de urina, mofo e decomposição. Seu estômago pareceu revirar-se em mal-estar. A ânsia de vômito quase incontida a lhe forçar a garganta.
Forçou debalde as amarras que lhe tolhiam os movimentos, revirando a mente na tentativa de esclarecer a si mesmo de que maneira fora chegar ali, naquele lugar imundo que mais parecia a toca de um animal. Lembrou do ar fresco e úmido da densa floresta. Depois de uma ligeira refeição matinal, se pôs a explorar o restante do lugar e catar mais gravetos para uma nova fogueira, adentrando ainda mais para o norte e oeste de onde estava acampado. A floresta ali lhe pareceu por demais silenciosa, como se ali nada vivesse alem da grossa vegetação, diversos cogumelos e alguns outros fungos e musgo. O silêncio onde mal se ouvia o farfalhar do vento nos galhos mais altos ecoava pela suave neblina que envolvia todo o lugar. Apenas ao longe, às vezes, o pio ocasional e perdido de alguma ave. O céu de um embaçado cinzento não permitia sequer saber com exatidão a posição do sol. Tirou do bolso o telefone celular. Sem sinal. Resolveu voltar ao acampamento lamentando não ter companhia. Seria agradável alguém para conversar um pouco e afastar a má impressão que o lugar começava a lhe causar.
Depois da modesta refeição, à tarde, folheou um livro para se distrair. Lá fora uma fria garoa caia incessantemente. Esperava que o dia seguinte fosse de sol. Talvez o mau tempo houvesse tornado mais reclusa a fauna local que viera pesquisar. Olhou novamente o telefone, desta vez com uma ponta de preocupação. Muito inconseqüente de sua parte se embrenhar assim sozinho naquela mata perdida no meio do nada. Não queria imaginar as conseqüências de algum infortúnio imprevisto, pois simplesmente não teria a quem pedir ajuda em caso de necessidade, e ali, naquele fim de mundo, o telefone nada mais era que um relógio. Soltou um longo suspiro e adormeceu por fim, esgotado. Amanhã seria um dia melhor, certamente.
Despertou ao final do crepúsculo. O céu agora era uma massa de plúmbeas nuvens de chuva iminente. Apanhou o violão que trouxera para distrair-se, executando algumas melodias. A chuva principiava a desabar com força, numa torrente gelada e volumosa. Ouviu por um bom tempo o contínuo martelar das grossas gotas sobre seu abrigo de lona e plástico, satisfeito por estar protegido e seco. O vento em rajadas sacudia a barraca a todo instante. Para sua sorte, a barraca era bem resistente e ele a havia montado com bastante firmeza. O som da água escorrendo pelo solo pedregoso dava idéia de um rio correndo ao seu redor. De súbito, julgou ouvir ao longe um som que lhe enregelou os ossos. Um grito áspero, agudo e estridente que se prolongava até um profundo grunhido nasalado. Parou a musica na tentativa de ouvir melhor o medonho som. Nada. Apenas o som da torrente que se precipitava sem trégua sobre a floresta. Esperou mais algum tempo com os ouvidos apurados na expectativa de que o som se repetisse, mas sem tornar a ouvir o grito. Somente o som da chuva contínua. Voltou ao violão, certo de que havia sido apenas impressão sua. Talvez um pássaro de uma espécie ignorada reclamando da chuva ou algo do tipo. Mais tarde, com os dedos doloridos pelas cordas e embalado pelo som da chuva, adormeceu outra vez, abraçado ao instrumento.
A aspereza das cordas lhe machucava os pulsos e os tornozelos. Os nós eram apertados como torniquetes, impossibilitando quaisquer movimentos. Tentou engolir, em seco. A boca estava seca e tinha o desagradável sabor de sangue e todo o seu corpo doía. Durante um bom tempo permaneceu lutando contra a dor e tentando-se manter consciente, mergulhado da escuridão vermelha e esfumaçada. Ouviu o som de passos arrastados e rudes vindos de algum ponto ali bem perto, sentindo um calafrio lhe correr o corpo. Sentiu-se prestes a desfalecer, esgotado e apavorado. Lembrou-se de haver despertado no meio da noite. Não fazia idéia de que horas seriam aquelas. A chuva continuava a cair fortemente. Espreguiçou-se com alguns estalos das suas juntas e procurou uma barra de chocolate na mochila, sentindo-se um pouco entediado. Encontrou o doce e mordeu um pedaço enquanto imaginava quanto tempo ainda iria chover. E, outra vez de súbito, o estranho grito ecoou pela noite. O mesmo som que lhe arrepiara o corpo horas antes. Desta vez, porém, o sinistro lamento lhe soou bem mais claro e mais próximo. Sentiu-se repentinamente arrependido de haver ido sozinho até ali. Não conseguia imaginar que espécie de animal poderia ter produzido tal som, que ao mesmo tempo lhe lembrava um horrendo pio de ave e o urro de um grande animal. Esperou outra vez por longos minutos. Novamente o aterrador ruído. Para seu desespero, estava claramente mais próximo à sua barraca. Bem mais próximo. O suor frio do medo começava a brotar de sua testa e todo o corpo. Tremia assustado, confinado na minúscula barraca que a chuva açoitava sem piedade. A barraca o protegia bem da chuva, mas não se sentia seguro contra outras coisas ali dentro. Alcançou a afiadíssima faca de caça sob o saco de dormir e desligou a lanterna. Talvez a ausência de luz despistasse o que quer fosse aquilo que parecia estar vindo em sua direção. Tinha a nítida impressão de que todos os sons pareciam mais audíveis sob a escuridão intensa. Escuridão absoluta. Não enxergava sequer as próprias mãos. Ouvia com clareza sua respiração acelerada pela adrenalina destacando-se do monótono martelar da chuva e sentia frias gotas de suor lhe escorrerem pelo nariz e pelas pálpebras. Os músculos do torso e dos punhos retesados, rígidos como os de um cadáver. Apenas a absoluta escuridão e o som da chuva incessante.
Durante bastante tempo ficou ali, alerta. O som da chuva diminuindo de intensidade, mas sem cessar. O murmúrio da água escorrendo entre as pedras e as gotas martelando a folhagem e a barraca. O sinistro grito não tornara a ser ouvido e ele começava a crer que, o que quer que o houvesse emitido, deveria ter isso para longe dali. Suspirou com uma leve pontada de alívio, sem largar a faca firmemente presa em seus dedos suados. De súbito, um outro som lhe chegou aos ouvidos. Passos. Apurou o ouvido, imerso na escuridão total da barraca. Ouviu com clareza o som de passos cautelosos movendo-se em direção da barraca. O ruido da vegetação cedendo sob o peso de alguma coisa caminhando sorrateiramente a poucos metros dali. Sentiu-se prestes a perder o controle de seus movimentos. Não chegava sequer a sentir as falanges doloridas, tenazmente cerradas em torno do punho da faca como pinças de aço. Tentava não produzir som algum enquanto respirava ofegante. O coração disparado batendo com toda força em seu tórax. Os passos pararam. Moveu lentamente a cabeça tentando ouvir novamente o som, mas apenas a chuva era audível. De novo as furtivas e lentas passadas começaram. Também ouvia agora o que lhe parecia um horrendo sussurro rouco e sibilante. Cerrou os dentes, absolutamente aterrorizado. Nunca ouvira nada como aquele ruído, tão sinistro e gutural. O suor lhe inundava os olhos, que ardiam. Cada nervo seu parecia exposto. O corpo tremendo em espasmos enquanto ouvia a coisa rondar a barraca sem pressa alguma. A chuva continuava a cair pesada. Os passos cessaram um instante que ele não soube avaliar a duração. Um rosnado grave e surdo soou baixo em meio ao som da chuva. Mais silêncio. Cerrou ainda mais os dedos empunhando a faca. Os passos recomeçaram. Abriu os olhos para o escuro impenetrável da noite. Talvez se fizesse algum ruído ou acendesse a lanterna conseguisse afugentar a coisa lá fora. Os passos pararam mais uma vez. A coisa estaria parada, como que aguardando algo. Os minutos se arrastavam pesados e tensos ao som da chuva torrencial. Silêncio. Somente a torrente e sua respiração se faziam ouvir na noite. E, como numa explosão, o som de um trovejante urro disparou enquanto algo pesado saltava sobre a barraca. Tentou debater-se, cego e desesperado, mas violentos golpes o atingiram na cabeça. O gosto de sangue lhe invadindo a boca e a tontura que o fizera adormecer.
Não sabia quanto tempo ficou desacordado. Apenas abriu os olhos, atarantado. O corpo inteiro doía e estava dependurado pelos pés, muito machucado, no interior de uma espécie qualquer de gruta. O som dos passos agora era seguro, sem pressa. Um cheiro pútrido e repugnante encheu o ar por completo. Na semiescuridão da gruta, viu surgir um vulto de aparência aterradora. Apenas uma grotesca sombra a mover-se nervosamente no escuro em gestos lerdos. Os movimentos trêmulos, quase espasmódicos. Pareceu distinguir na figura uma vasta e desgrenhada cabeleira de onde parecia emergir um rosto proeminente e deformado como a face de um animal, e dedos esqueléticos de longas garras no final de braços finos que quase tocavam o chão. A silhueta magra parecia envolta numa longa e repugnante membrana que lhe pendia dos braços e ao mover-se produzia um farfalhar úmido e membranoso, como que envolta em plástico ou borracha.
Durante um longo tempo a criatura mexeu em objetos diversos, espalhados em absoluta desordem, sussurrando estranhas e ininteligíveis palavras numa voz áspera e sibilante. Examinava frascos e ossos, revirava pequenas caixas de conteúdo que ele ignorava absolutamente. Parou de repente, voltando-se para ele. Os dedos ásperos e fortes subitamente fechando-se em torno dos seus cabelos num violento puxão. A cabeça já dolorida latejou com força enquanto a pele que lhe cobria o crânio ameaçava desprender-se. A coisa aproximou o rosto do seu. O hálito pútrido exalando o odor de entranhas apodrecidas e gotas de saliva espumosa lhe atingindo a face sob a respiração pesada da criatura. Novamente a ânsia de vomito. A criatura virava sua cabeça firmemente presa pelos cabelos. Parecia examinar cada detalhe de seus traços ou mesmo adivinhar sua ossatura sob os músculos do rosto. A coisa abriu a boca. Uma lufada de ar morno e podre lhe atingiu o rosto em cheio e ele sentiu algo úmido, viscoso e áspero como uma lixa deslizar sobre seu rosto. O fedor nauseabundo o sufocava enquanto a criatura lhe lambia a face. A criatura o soltou de repente. A nuca atingindo em cheio a parede atrás de si quando seu corpo oscilou, pendurado pelos pés, com um forte impacto. Outra vez os dedos ásperos o seguraram pelos cabelos, desta vez detendo o balanço do seu corpo. Ele sentiu uma dor profunda e lancinante no abdome e um calor lhe correu o corpo. Cerrou os dentes com a toda a força que possuía, travando a mandíbula e grunhindo de dor. Fluidos quentes e viscosos lhe escorriam pelo peito até o pescoço e o queixo, inundando as narinas e a boca. Pode sentir mãos lhe invadindo avidamente o corpo aberto e revirando-lhe as entranhas ainda vivas e pulsantes. O som liquido de carne rasgada. Na sua mente, tudo que veio foi um doloroso arrependimento e um pavor inexprimível. Desejou chorar, alucinado de dor e medo. Pensou em estar em sua casa, a salvo, mas sabia que jamais voltaria a ela.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Feliz ano novo, cowboy

Feliz ano novo, cowboy

Olho com uma certa desolação o horizonte recortado por um mar de casas amontoadas e feias, cinzentas. Dão a impressão ao longe de uma imensa pilha de lixo ou túmulos de um vasto e caótico cemitério maltratado. As esqueletais antenas de TV cheias de restos esvoaçantes de pipas que se espalham pelos fios elétricos dos postes. Tudo seco e quente, como a aridez inamistosa do deserto, onde nada é caloroso além do sol forte abrasador, e do vento morno que traz o cheio de fuligem e de esgoto junto com vozes de crianças.
Uma pena. Não sou tão cowboy quanto gostaria. Não vou além do surrado chapéu de couro, dos cigarros sempre á mão e da cara de poucos amigos. Uma pena. Detesto ser um farsante.
Tudo que queria agora era uma vodka com gelo para zombar do verão seco e escaldante, estar num lugar qualquer longe, muito longe. Não há nada de que eu gostaria de estar perto agora.
O mundo veio abaixo. Mais uma vez. Não sei como me sentir agora. Talvez devesse chorar, mas não sou bom nisso. Nunca fui. Estou num destes instantes em que tudo parece ser um filme, e tudo que você deseja é que fosse mesmo um. Seria tudo fugaz e seria apenas uma fraude ensaiada para ganhar elogios de intelectuais e críticos de arte. Mas não é. E a pergunta soa ecoando como uma goteira numa grande sala escura: e agora, cowboy?
Momentos felizes passam como estrelas cadentes. Eles não vão voltar. Outros momentos ainda melhores que não foram além de planos apagam-se como velas na chuva. Não aprendeu ainda, não é, cowboy? Não acho que vai aprender agora, então escute: não pense no futuro, ou vai desejar ter sido baleado de verdade. Balas morais podem machucar como o diabo mas nunca matam. Você invariavelmente vive para sentir a dor que nada faz passar. Você quer socar uma parede até arrebentar os punhos, quer se encharcar de gasolina e acender um cigarro para incinerar em paz, quer dormir para sempre. Creio que seja assim que sentem as promessas não cumpridas. Mas acho que desaprendi a me abalar, a chorar velório de romance falido. Não sinto raiva, ao menos não tanta. Nem sei “se” ou “de que” exatamente sinto falta. Apenas me sinto num vazio sufocante, causticante, um deserto que oferece sempre a mesma paisagem seca e sem vida em todas as direções até o horizonte.
Então, cowboy? O que vai ser? Sentar no meio do deserto e esperar a sorte lhe trazer uma chuva ou uma tempestade de areia? Seguir até encontrar uma cidade onde se virar ou até encontrar nada e morrer seco e perdido no meio do deserto?
Toco as cordas de aço. Um som melancólico, seco, árido e metálico. Olho mais uma vez o amontoado de casas manchadas e cinzentas ao meu redor sem nenhuma emoção além de uma vaga tristeza apática e sem vida como se meu coração houvesse parado e minhas veias se enchido de areia. Fantasmas de momentos felizes e há muito sepultados vêm me assombrar como vespas do inferno. Deve ter sido bem triste me ver pelas costas naquela noite com meu chapéu, carregando as malas e o violão sem promessas de voltar. Não quero pensar nisto. Nem em coisa alguma.
Minha garganta seca pede vodka. Acendo um cigarro. Lembro que o natal passou como uma sombra, como o sopro que estremece a chama de uma vela. Um dia amargo, como chegar em casa voltando de um enterro.
O ano vai acabar, como sempre acaba. E então, cowboy? O que vai fazer depois que silenciarem os fogos e a cerveja acabar? A onde vai com seu chapéu e seu violão? Onde pensa em chegar com seus olhos de réptil e sua cara de deserto?