segunda-feira, 16 de setembro de 2013

O Voto (parte II)

Na manhã seguinte, não totalmente refeito daquela noite quase insone, me dirigi à varanda do primeiro andar para do alto admirar o jardim, e só então percebi algo. Senti meu sangue gelar por uma fração de segundo diante a estranha impressão que me causou a visão das estátuas dos anjos vistas dali. Estavam todas de costas para a entrada da casa, voltadas para o muro, para o portão, como que aguardando um intruso muito indesejado.  Aquela visão, por algum motivo, me perturbou ao extremo, como se de repente algo oculto me houvesse sido revelado numa estranha epifania. Os anjos não estavam voltados para o muro ou o portão, mas, eu podia ver agora, para algo de fora, além, algo de longe. Para o leste. Senti um breve calafrio a me correr o corpo e, de repente, me peguei a me perguntar o que estariam aqueles anjos prontos a enfrentar e repelir.
- Bom dia, rapaz!
Naquele instante, mesmo a voz suave do velho me fez retesar o corpo num arrepio de susto.
- Desça para tomar café, rapaz. Vou precisar de alguma ajuda hoje.
Afaguei os cabelos brancos do velho e me dirigi à escada, com uma má sensação a me seguir os passos. Uma tensão fria e insidiosa que parecia vir de lugar nenhum e sem razão aparente. Ainda me causava estranheza os anjos de pedra com seus rostos graves e de armas em punho a montar guarda. Contra o que?
Encontrei a cozinha vazia, onde fiz uma refeição sem muito apetite e, após algumas voltas pela casa vazia, me dei conta que a governanta não estava em casa.
- Aquela velha rabugenta foi visitar a filha.  Já que você está aqui, resolveu passar uns dias por lá e acho que volta em uma ou duas semanas. Foi bom mesmo – disse o velho com uma ponta de riso. – Já estávamos dando nos nervos um do outro.
O dia correu preguiçoso, permeado de um silencio e uma tranquilidade que me fustigaram os nervos como um relho.
Durante o jantar o velho anunciou que eu deveria leva-lo no dia seguinte em Baía do Sono, uma pequena cidade costeira da qual eu jamais ouvira falar. Concordei de pronto, pois não via a hora de sair daquela casa que me dava náuseas e arrepios, e a ideia de sair dali me trouxe algum ânimo. Jantamos com vontade, conversando amenidades, e fomos dormir cedo, pois iríamos madrugar na manhã seguinte.
O que me lembro é que aquela foi a pior noite que passei naquela casa. Quando finalmente consegui conciliar o sono naquele quarto frio e cheirando a umidade, tive estranhos pesadelos. Via, sob uma luz cinzenta penumbrosa, grandes ondas geladas a arrebentarem contra um grande muro de pedra negra, e no sonho meus nervos se arrepiavam de pavor ao ouvir um rugido trovejante que parecia vir de algum ponto às minhas costas, como o urro de alguma besta colossal. Despertei num salto daquele horror, sentindo-me aterrorizado e ligeiramente febril, não conseguindo voltar a dormir. Ainda podia sentir minhas narinas arderem com a maresia gelada e o tenebroso urro colossal a ecoar em minha mente. Apanhei uma vela em minha cabeceira, ainda trêmulo, e me pus a andar pela casa. Não conseguia, por nada no mundo, permanecer deitado naquele quarto. Vagando pela casa, cada vez que atravessava aqueles corredores e salas de teto alto repletas de quadros, mais me sentia preso num estranho sonho de sombras onde algo aterrorizante parecia espreitar. Os retratos que pareciam me olhar com censura e severidade na semiescuridão e as paisagens nas telas pareciam janelas para outros mundos.
Não resistindo ao impulso, me dirigi ao porão e parei diante da porta fechada ao fundo, tal com o na noite anterior. Estendi minha mão novamente e pensei, naquele instante, em voltar ao quarto e tentar dormir mais uma vez. Estremeci por um instante e, num movimento brusco, abri a porta. O que encontrei ali dentro me gelou o sangue de imediato, e eu desafio qualquer pessoa mentalmente sã a reagir com indiferença diante daquilo que havia ali dentro. A porta dava para um minúsculo cômodo que não devia medir mais de dois metros cada parede e mais parecia uma pequena gruta. As paredes eram cruas, sem acabamento além de uma grosseira pintura azul escura. Ao fundo, sobre um pequeno altar e cercada de velas acesas, havia uma sinistra escultura em pedra escura representando a cabeça de um ser aberrante ou alguma entidade infernal. Lembrava um dragão ou uma tenebrosa serpente, de olhos perversos e a bocarra repuxada num esgar demoníaco, exibindo os dentes afiados. A escultura estava banhada em sangue recente, que formava fios brilhantes de aspecto viscoso entre as velas escuras acesas ao seu redor. Pelos restos de sangue e parafina ali acumulados, aquele tenebroso ídolo esteve ali havia muito tempo, sendo regularmente regado a sangue e tendo as velas renovadas. Dei um passo atrás, horrorizado com o ar carregado e odioso que emanava daquela escultura grotesca e sombria. A face daquela besta, mesmo esculpida em pedra, parecia viva e animada, como que habitada por algum espirito amaldiçoado e, por um breve momento cheguei a imaginar que rosnava ameaçador contra mim. Quase podia ler seu olhar demoníaco e ouvir sua voz blasfema ordenando que me retirasse. Trêmulo, cheio de horror e repulsa, me apressei em fechar aquela porta que eu jamais devia ter aberto me afastar dali. O que uma coisa como aquela estivera fazendo na casa do velho todo aquele tempo, eu me perguntava. Apostaria meu braço direito como ninguém sabia o que havia atrás daquela porta, e me perguntava quais outras coisas meu tio poderia esconder. Imediatamente lembrei dos anjos no jardim, voltados cheios de ameaça para o leste. Um arrepio me passou o corpo. Medo. Uma sensação assombrada de mau presságio. Subi apressado ao meu quarto, observando que a manhã já ia despontando no horizonte. No leste.
Despertei num salto ao tilintar persistente do despertador. O velho Mathias já estava pronto a me aguardar da sala, onde ouvia sossegado Cânone em Ré.
- Preciso que desça ao porão e busque uma caixa para mim, filho – disse o velho acima dos violinos e violoncelos. – Uma caixa de madeira lá no fundo.
Desci ao porão e trouxe de lá a pesada caixa até o carro. Trancamos a casa e saímos ainda na penumbra da manhã. Enquanto preparava as coisas para viajar, não consegui olhar o velho nos olhos e creio que não consegui esconder o quanto estava perturbado. Via agora meu tio com outros olhos. A imagem do velho gentil e companheiro parecia agora somente uma máscara a esconder um estranho. Um estranho que adorava em segredo uma entidade pagã, que construiu sua casa com anjos montando guarda contra... contra o que?

- O que há, filho? Dormiu mal? Está com olheiras terríveis – disse o velho com seu sorriso amável que só então percebi ser assustador e dissimulado. Por um momento tive pavor da sua presença e senti vontade de deixa-lo ali onde estava e fugir para longe daquele lugar, mas aquela estranheza cedeu ao lembrar-me de que o velho sempre fora um bom homem para mim e toda a família, e nada justificaria aquela minha desconfiança. Naquele momento, enquanto girava a chave na ignição e tentava me convencer de que estava me assustando á toa, não conseguia me sentir totalmente tolo. Não conseguia desviar minha mente dos sete anjos montando guarda e do horrendo ídolo escondido no porão, não conseguia me livrar da má sensação que aquela casa me causou naqueles dias, e nem do pesadelo daquela noite, que naquele momento me voltou á mente fazendo meu sangue gelar.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

O Voto (parte I)

- Anda logo com isso!
- Pera, porra! Deixa eu ver isso aqui!
- A gente tem que derrubar logo essa porra. Nado tá enchendo meu cunhão já.
- Eu sei, frango, mas deixa eu ver o que é isso aqui. Parece um diário.
- E daí? Tu nem sabe quem escreveu, então o que interessa...
- Cara, eu gosto de coisa antiga, principalmente coisas que eu sei que já teve um dono.
- Tá, tá bom. O que tem escrito aí?
O homem olhou com certo fascínio o caderno bastante velho e meio roído nas bordas, mas cujas linhas escritas estavam bem preservadas e cheias de uma caligrafia nítida.
- Vamo trabalhar e depois eu leio com calma – disse o homem, guardando o caderno com as suas coisas e apanhando a marreta.
Em sua casa, após jantar e ajudar a filha com o dever de casa, o homem pegou o caderno e se pôs a ler as páginas. O volume tinha as páginas emboloradas e acastanhadas pelo tempo. Havia uma data na primeira folha, escrita com esferográfica: dezembro de 1987. Em seguida, iniciava-se o relato, cujas primeiras palavras de pronto prenderam o interesse do homem:
“À aqueles que por ventura lerem estas linhas, peço apenas que não me julguem. E advirto para que tenham força em seus espíritos. Se você não tem nervos fortes e facilmente se impressiona, não leia além deste ponto.”
O que relato aqui – prosseguia a caligrafia firme – não é nada além da verdade, que decidi narrar para que não a levasse comigo ao túmulo. Sei que não irão crer no que digo aqui, mas isto não importa. Não mais.
Para minha sorte, existem ainda boas pessoas no mundo, como Pedro e seu sócio João, que não apenas confiaram a mim um trabalho honesto como me permitiram me abrigar em seu restaurante, servindo assim como seu vigilante no turno da noite. Nem todos tem família após trinta anos de cárcere. Sobretudo os condenados por assassinar um parente. Não imagino o destino de minha irmã e meu irmão, nem de meus tios e primos. Trinta anos e sequer uma carta. Mas não os detesto, não os condeno. São tão inocentes quanto eu mesmo. Na verdade, até mais. Não testemunharam o que eu testemunhei, e nisso são infinitamente abençoados.
Vai ser difícil para quem ler estas linhas, cuja tortuosidade eu lamento muitíssimo, imaginar o inferno na Terra, em vida. Imaginem-se privados por completo de sua privacidade, de seu conforto, de qualquer coisa agradável, saudável ou meramente familiar. As celas são mal iluminadas, cheiram à suor, ao ranço de corpos pouco asseados e à  mofo. A comida é apática e não nos apetece, e é necessário estar constantemente em alerta, sempre avaliando com quem conversamos e o que dizemos, sob pena de ser degolado, ou ter o corpo perfurado por chuços, o que talvez seja até pouco quando lembro do nojo, a dor e a humilhação da sodomização. Trinta anos. Como se fosse pouco o que descrevi acima, havia ainda a inocência, pois não havia cometido os crimes dos quais era acusado. Não houve crime, sequer, embora o caminho percorrido pelo velho – esteja ele onde estiver – seja permeado de atrocidades, muitas das quais jamais saberemos. Sim, cumpri trinta anos no inferno livre de culpa. Foi-se minha saúde, foi-se minha vida toda. Não sei como não se foi junto minha sanidade, depois daquilo que ouvi do velho e, pior, daquilo que pude ver com meus próprios olhos. A verdade sobre a morte do velho, se é que de fato morreu na ocasião, é simplesmente impossível de ser tida como tal por quem não houvesse visto tudo com seus próprios olhos ou não houvesse testemunhado em suas vidas alguma forma de horror igualmente inenarrável. Ninguém jamais acreditaria em nenhuma palavra minha e, de qualquer forma, eu ainda hoje não sei o que poderia ser pior que ter assistido àquilo que assisti naquela noite.
Passamos o fim de semana no interior, comemorando o aniversário de 107 anos de meu tio-bisavô, Mathias. Nenhum de nós acreditava que uma pessoa pudesse viver tanto tempo. O velho era um homem muito rico, muito gentil e muito generoso, com uma vasta cabeleira branca e mãos grandes e habilidosas. Da família toda, a pessoa que lhe era mais apegada era eu, e aquilo não havia mudado desde criança. Costumávamos cavalgar juntos por suas terras, tanger gado, pescar no riacho da fazenda. Mas muito de seu vigor ficara no passado, e em nossas ultimas visitas ficamos somente conversando sobre outros tempos, estórias de quando nem meus pais eram nascidos. Ficávamos nós dois por horas assim noite adentro, e não foi diferente naquela ultima festa.
Quando, no final da tarde do domingo, minha família se preparou para ir embora, o velho me pediu para ficar, pois tinha algumas coisas a resolver e precisaria de minha ajuda, além do que, minha presença naquela casa imensa seria boa para alegra-lo e melhorar-lhe o ânimo, pois ninguém tem a melhor saúde naquela idade. Tendo me separado fazia pouco tempo de minha noiva e recentemente demitido, não vi problemas, embora preferisse ir para casa e seguir procurando um novo trabalho no dia seguinte.
Já naquela primeira noite, percebi algo estranho. Bastante discreto, devo dizer, e por isso mesmo não me causara de pronto nenhum grande alarde. Não sei se o olhar gelado e reticente da sua governanta – uma senhora miúda, pálida como uma convalescente e de cabelos brancos – ou algo mais sutil, como o frio da madrugada se infiltrando pelas frestas das portas e janelas no silencio sepulcral daquela casa enorme. Não sei dizer ao certo o que, naquela noite, me causou tão soturna sensação.
No dia seguinte me senti envergonhado e meio desconfortável por acordar um tanto tarde. Uma sensação inquietante de desconforto em estar naquela casa grande e opulenta quando devia estar pondo minha vida de volta nos eixos. Desci à cozinha, onde a governanta me respondeu com bastante secura ao meu bom dia, retirando-se logo em seguida para a área de serviço, deixando-me com uma persistente má sensação.
Fui ao jardim à procura do velho Mathias. Ainda era o mesmo jardim no qual brincara bastante em minha infância, mas somente naquela manhã pude observar o detalhe das estátuas. Sempre estiveram ali e sempre as vi, solenes e esculpidas com extremo esmero. Sete. Sete anjos. Cada um portando uma espada, com uma expressão grave em seus rostos de pedra, numa pose de quem está pronto a repelir algum inimigo. Todas voltadas para o muro principal da mansão. A inquietação, suave e persistente, agitando-se em minha cabeça. E ali, pensativo em sua cadeira de rodas, estava o velho. Parecia olhar para o vazio, como se olhasse para outros dias. Fui até onde estava e ficamos ali um bom tempo a conversar, e mesmo sem esconder sua saúde frágil, vi o ânimo do velho melhorar bastante, embora não me deixasse a impressão de que escondia umatensão qualquer.
Naquela noite, entediado e insone, me pus a vagar pela casa, com uma vela na mão. Notei durante o dia uma certa melancolia e uma certa decrepitude na suntuosidade daquela mansão, que já vira dias melhores e de maiores alegrias e que então abrigava apenas um velho, a taciturna governanta e uma bonita enfermeira que cuidava do velho fazia alguns meses. Se fosse mais esperto, e minha vida estivesse mais em ordem naqueles dias, certamente teria dado mais atenção à minha intuição, aos avisos que recebi, pois à noite, uma atmosfera de estranheza que eu jamais soube explicar se apossava do lugar, como uma teia de sombra e silencio escorrendo dos cantos e das frestas, exalando dos quadros antigos e da mobília secular. Em minha inspeção noturna pela casa, na qual insisti somente para me provar que não havia nada o que temer ali, deparei com uma porta ao fundo do porão, lembrando-me naquele momento que jamais, desde que podia me lembrar, havia ido naquele cômodo. Senti, pela primeira vez, um ímpeto verdadeiro de ir adiante e ver o que havia ali dentro. Hesitei por alguns instantes, sentindo aquela atmosfera se impregnar em meus poros. Podia jurar que alguém estava me observando com olhos inamistosos. Meu coração pareceu disparar com um súbito e inexplicável temor quando estendi a mão. Mas quase deixei cair a vela, tomado de enorme susto. No escuro da madrugada, a voz seca e velada da velha governanta soou horrendamente fria e descarnada. Seu rosto parecia ainda mais pálido e mórbido sob a luz da vela que trazia em sua mão
- Se não sabe o que há atrás de uma porta fechada é melhor não abrir.
Fiquei alguns instantes assombrado e embaraçado, sustentando com dificuldade o olhar frio da governanta, que não dava sinais de que me deixaria ali sozinho, e depois a segui para fora do porão, envergonhado e ressabiado. A mulher não se dignou a dizer uma palavra a mais sequer além de um ‘boa noite’, seguindo para seu quarto, deixando-me ali sozinho no térreo. Por algum motivo, a casa, à noite, parecia mais fria, com seu teto alto e suas paredes repletas de quadros. Parecia realmente haver algo fantasmagórico impregnado naquele ambiente que não me permitia dormir. Fiz o sinal da cruz ao me ver sozinho de volta em meu quarto, e tentei dormir um pouco.