sexta-feira, 11 de novembro de 2011


Amantes

Ela trancou a porta com gestos delicados e pausados. Os dedos macios de unhas bem cuidadas tocando com suavidade o metal frio. O som metálico e fluido da fechadura acionada soou como um beijo de boa noite ou um pedido de silêncio com uma carga minuciosamente calculada de erotismo dissimulado. Deteve-se por uns breves instantes diante da porta fechada absorvendo o silêncio que apenas o discreto zumbido do refrigerador rompia. Seu perfume discreto abrandando o ar parado como uma extensão de sua pessoa a tatear pela sala com mãos afetuosas e ousadas. Estavam a sós, em fim. Mordeu de leve o lábio inferior vermelho e brilhante, como uma cereja fresca. O dorso de um dos pés apoiado sobre o calcanhar do outro numa pose divertida e romântica.  Uma expressão de divertida transgressão e luxúria iminente. Um gesto tão seu desde a sua infância, quando cometia alguma travessura longe dos olhos vigilantes dos adultos. Ou, na adolescência, quando se imaginava tomada de arroubo por algum belo jovem que a beijasse com força e a tocasse como um homem toca uma mulher, ou quando olhava com uma discrição felina as outras meninas despidas no vestiário da escola.
Virou-se, por fim, girando sobre as pontas dos pés. Um brilho terno e quente estampado nos olhos escuros e vivos. Medindo os passos, sem pressa e com a leveza de um elfo, aproximou-se dele em silêncio. Contemplou demoradamente o rosto pálido e viril que ali, relaxado e de olhos fechados, parecia ter algo de delicado e infantil que o tornava ainda mais especial. Os lábios bem desenhados, o rosto anguloso perfeitamente escanhoado, os cabelos muito negros como os seus. Poderiam facilmente passar por irmãos. Olhava-o com ternura enquanto deslizada os dedos macios pelo seu rosto e seus lábios. Ele não se moveu. Continuava tão imperturbável quanto a expressão de absoluta placidez estampada em seu rosto, e ela quase foi às lágrimas. Iria perde-lo em breve, ela sabia. Apenas em suas lembranças o teria para si após aquela noite. Tão belo quanto efêmero. Debruçou-se sobre ele lentamente, fechando os olhos para que parasse o tempo ao redor deles, e o beijou com toda a ternura que poderia sentir. Os lábios macios que a sua língua provava deliciada. Sentia ceder a ternura, substituída por uma crescente excitação. Despiu-se languidamente sem desviar os olhos dele. O cheiro de sua pele quente e de roupa íntima fluindo no ar como partículas de uma sensualidade delicada e, por isto mesmo, muito poderosa. Tomou as mãos firmes e másculas entre as suas. Sentiu os dedos fortes com suas mão delicadas, e os levou ao seu rosto, extasiada por aquele toque. Sentiu com a língua e com os lábios cada um deles como se provasse um doce. Levou aquela mão aos seios, pressionando-a contra o volume macio e os mamilos intumescidos e sensíveis. Gemeu baixinho em falsete, ofegante de excitação enquanto sentia-se ser acariciada. Levou a mão de dedos firmes por entre suas coxas. A pele macia arrepiando-se ao toque delicado e vigoroso ao um mesmo tempo. Fechou os olhos, tomada de um prazer crescente e pulsante que lhe subia pelo corpo sob o movimento ritmado de seus quadris. A boca aberta numa expressão quase dolorosa, de tão intenso.
Numa seqüência de movimentos ágeis e lascivos, deitou-se sobre ele. Roçava contra ele todo o seu corpo despido. Tomou-lhe o rosto entre as mãos, beijando-o com voracidade e volúpia, destituída de toda a ternura que antes pontuava cada um de seus gestos. Apenas a luxúria que a possuía como um demônio. Sentia em sua língua quente o sabor da pele enquanto lhe lambia o pescoço, os mamilos, o peito largo e forte. Os movimentos vigorosos dos quadris contra os dele. Outra vez o calor e o prazer crescendo em seu corpo. Desta vez com mais intensidade. Cada músculo, cada nervo, cada célula sua exalava sexo. Pronta para o choque da poderosa onda que vinha por todo o seu corpo enquanto se movia freneticamente e ofegava entre gemidos extasiados. O suor a porejar-lhe os seios, a testa, as costas. Fechou os olhos e deixou que o corpo sentisse cada espasmo do avassalador prazer que chegava, por fim. A deliciosa dormência que aos poucos tomava músculos e ossos enquanto respirava profundamente. Todo o corpo relaxando devagar, como as centelhas coloridas dos fogos-de-artifício placidamente caindo após a explosão. De olhos fechados, restabelecia seu ritmo enquanto sentia com as mãos os músculos potentes sob seu corpo. Olhou mais uma vez o rosto belo e tranqüilo. A ternura de volta ao seu olhar e aos seus gestos enquanto gotas de suor lhe escorriam graciosamente pelo nariz. Inclinou-se mais uma vez, ainda um pouco ofegante, e o beijou com a paixão da mais adorável das amantes.
Afastou-se dele, afinal, muito a contragosto. Não suportava a idéia do fim. Era sempre assim, tão fugaz, tão febril. Nunca mais que um breve encontro, apenas.
Tornou a vestir-se tão languidamente quanto havia se despido. Os olhos ainda fixos no seu amante. Acariciou com melancolia os cabelos negros e grossos. Lavou as mãos e o rosto meticulosamente, como convinha. Tomou a prancheta e a caneta, organizando alguns papéis sobre a mesa ao lado e dirigiu-se até a porta com os mesmos movimentos delicados de felina, destrancando-a com cuidado, como que para não o despertar. Recolocou o lençol branco sobre o corpo, checou os materiais e equipamentos da autópsia e chamou o auxiliar de necropsias para ajudar com o cadáver prostrado na mesa de aço.


quinta-feira, 27 de outubro de 2011


O escuro

Ele abriu os olhos aos poucos, com dificuldade. Alguma coisa espessa e ressacada que ele imaginou ser sangue colava suas pálpebras e lhe irritava e feria os olhos. Sua cabeça latejava dolorosamente como que golpeada por dentro com um martelo, seus olhos doíam por dentro, no fundo das órbitas. Sentia as narinas arderem doloridas, inundadas de sangue que lhe escorria da garganta para a boca com um sabor desagradável e familiar. Os ouvidos pareciam tampados e doloridos. Desnorteado como estava, custou um pouco a perceber que estava dependurado pelos pés. Forçou um pouco sua mente, a muito custo, para tentar recordar-se de como fora ali parar. A floresta. Sim, estava na floresta, catando lenha para a fogueira. Havia chegado logo ao amanhecer e montado a barraca ao lado de um penhasco pedregoso junto a uma volumosa corredeira. Um lugar bem aprazível, de aspecto selvagem e intocado, embrenhado no fundo da floresta algumas horas a pé da trilha principal.
Fungou o sangue nas narinas. A boca e a garganta enchendo-se da espessa e repulsiva mistura de secreções, que tentou inutilmente engolir para aliviar a sensação de seca na garganta. Tentou cuspir, mas tudo que conseguiu foi deixar que escorresse lentamente pela sua face o fluido quente e viscoso. Sua cabeça doeu mais forte, pesada como se feita de chumbo.
Havia caminhado longamente durante o dia para melhor explorar o local, admirado com as imensas e frondosas árvores de ásperas cascas cobertas de musgo, catando os gravetos que ia encontrando para deles fazer sua fogueira. Retornou ao acampamento algumas horas depois com o suor a lhe escorrer pela testa e as mãos arranhadas e sujas. O cheiro da floresta a lhe impregnar as roupas. Preparou seu modesto almoço e se pôs a contemplar a vista do imponente penhasco a sua frente. Uma névoa suave parecia cobrir a vasta floresta que se estendia lá embaixo. Ao longe, grandes montanhas de ar sombrio se erguiam majestosas e inescrutáveis. Dava a impressão de estar num filme qualquer sobre mundos perdidos e desconhecidos, com todas aquelas árvores imensas.
À noite, vencido pelo cansaço e pelo aconchegante frio que ia chegando, recolheu-se a sua barraca, metendo-se sob o cobertor e adormecendo logo em seguida. O som das criaturas noturnas chamando hipnoticamente o sono.
Passou uma rápida vista pelo lugar em que estava, movendo com dificuldade a cabeça. O pescoço rígido e dolorido parecia não obedecer a sua vontade. Viu-se envolto numa penumbra vermelha e quente, abafada. O ar era sufocante, cheio de uma fumaça pesada e oleosa que se desprendia de uma pequena fogueira onde bruxuleavam chamas vermelhas cuja luz projetava estranhas sombras nas paredes pedregosas incrustadas de raízes. Teve a impressão de enxergar vários ossos, frascos imundos, rústicas facas e cutelos adornados com ossos e figuras demoníacas sobre uma tosca mesa bem próxima de onde estava. O lugar era estava uma absoluta mixórdia e impregnado de um fedor nauseabundo de urina, mofo e decomposição. Seu estômago pareceu revirar-se em mal-estar. A ânsia de vômito quase incontida a lhe forçar a garganta.
Forçou debalde as amarras que lhe tolhiam os movimentos, revirando a mente na tentativa de esclarecer a si mesmo de que maneira fora chegar ali, naquele lugar imundo que mais parecia a toca de um animal. Lembrou do ar fresco e úmido da densa floresta. Depois de uma ligeira refeição matinal, se pôs a explorar o restante do lugar e catar mais gravetos para uma nova fogueira, adentrando ainda mais para o norte e oeste de onde estava acampado. A floresta ali lhe pareceu por demais silenciosa, como se ali nada vivesse alem da grossa vegetação, diversos cogumelos e alguns outros fungos e musgo. O silêncio onde mal se ouvia o farfalhar do vento nos galhos mais altos ecoava pela suave neblina que envolvia todo o lugar. Apenas ao longe, às vezes, o pio ocasional e perdido de alguma ave. O céu de um embaçado cinzento não permitia sequer saber com exatidão a posição do sol. Tirou do bolso o telefone celular. Sem sinal. Resolveu voltar ao acampamento lamentando não ter companhia. Seria agradável alguém para conversar um pouco e afastar a má impressão que o lugar começava a lhe causar.
Depois da modesta refeição, à tarde, folheou um livro para se distrair. Lá fora uma fria garoa caia incessantemente. Esperava que o dia seguinte fosse de sol. Talvez o mau tempo houvesse tornado mais reclusa a fauna local que viera pesquisar. Olhou novamente o telefone, desta vez com uma ponta de preocupação. Muito inconseqüente de sua parte se embrenhar assim sozinho naquela mata perdida no meio do nada. Não queria imaginar as conseqüências de algum infortúnio imprevisto, pois simplesmente não teria a quem pedir ajuda em caso de necessidade, e ali, naquele fim de mundo, o telefone nada mais era que um relógio. Soltou um longo suspiro e adormeceu por fim, esgotado. Amanhã seria um dia melhor, certamente.
Despertou ao final do crepúsculo. O céu agora era uma massa de plúmbeas nuvens de chuva iminente. Apanhou o violão que trouxera para distrair-se, executando algumas melodias. A chuva principiava a desabar com força, numa torrente gelada e volumosa. Ouviu por um bom tempo o contínuo martelar das grossas gotas sobre seu abrigo de lona e plástico, satisfeito por estar protegido e seco. O vento em rajadas sacudia a barraca a todo instante. Para sua sorte, a barraca era bem resistente e ele a havia montado com bastante firmeza. O som da água escorrendo pelo solo pedregoso dava idéia de um rio correndo ao seu redor. De súbito, julgou ouvir ao longe um som que lhe enregelou os ossos. Um grito áspero, agudo e estridente que se prolongava até um profundo grunhido nasalado. Parou a musica na tentativa de ouvir melhor o medonho som. Nada. Apenas o som da torrente que se precipitava sem trégua sobre a floresta. Esperou mais algum tempo com os ouvidos apurados na expectativa de que o som se repetisse, mas sem tornar a ouvir o grito. Somente o som da chuva contínua. Voltou ao violão, certo de que havia sido apenas impressão sua. Talvez um pássaro de uma espécie ignorada reclamando da chuva ou algo do tipo. Mais tarde, com os dedos doloridos pelas cordas e embalado pelo som da chuva, adormeceu outra vez, abraçado ao instrumento.
A aspereza das cordas lhe machucava os pulsos e os tornozelos. Os nós eram apertados como torniquetes, impossibilitando quaisquer movimentos. Tentou engolir, em seco. A boca estava seca e tinha o desagradável sabor de sangue e todo o seu corpo doía. Durante um bom tempo permaneceu lutando contra a dor e tentando-se manter consciente, mergulhado da escuridão vermelha e esfumaçada. Ouviu o som de passos arrastados e rudes vindos de algum ponto ali bem perto, sentindo um calafrio lhe correr o corpo. Sentiu-se prestes a desfalecer, esgotado e apavorado. Lembrou-se de haver despertado no meio da noite. Não fazia idéia de que horas seriam aquelas. A chuva continuava a cair fortemente. Espreguiçou-se com alguns estalos das suas juntas e procurou uma barra de chocolate na mochila, sentindo-se um pouco entediado. Encontrou o doce e mordeu um pedaço enquanto imaginava quanto tempo ainda iria chover. E, outra vez de súbito, o estranho grito ecoou pela noite. O mesmo som que lhe arrepiara o corpo horas antes. Desta vez, porém, o sinistro lamento lhe soou bem mais claro e mais próximo. Sentiu-se repentinamente arrependido de haver ido sozinho até ali. Não conseguia imaginar que espécie de animal poderia ter produzido tal som, que ao mesmo tempo lhe lembrava um horrendo pio de ave e o urro de um grande animal. Esperou outra vez por longos minutos. Novamente o aterrador ruído. Para seu desespero, estava claramente mais próximo à sua barraca. Bem mais próximo. O suor frio do medo começava a brotar de sua testa e todo o corpo. Tremia assustado, confinado na minúscula barraca que a chuva açoitava sem piedade. A barraca o protegia bem da chuva, mas não se sentia seguro contra outras coisas ali dentro. Alcançou a afiadíssima faca de caça sob o saco de dormir e desligou a lanterna. Talvez a ausência de luz despistasse o que quer fosse aquilo que parecia estar vindo em sua direção. Tinha a nítida impressão de que todos os sons pareciam mais audíveis sob a escuridão intensa. Escuridão absoluta. Não enxergava sequer as próprias mãos. Ouvia com clareza sua respiração acelerada pela adrenalina destacando-se do monótono martelar da chuva e sentia frias gotas de suor lhe escorrerem pelo nariz e pelas pálpebras. Os músculos do torso e dos punhos retesados, rígidos como os de um cadáver. Apenas a absoluta escuridão e o som da chuva incessante.
Durante bastante tempo ficou ali, alerta. O som da chuva diminuindo de intensidade, mas sem cessar. O murmúrio da água escorrendo entre as pedras e as gotas martelando a folhagem e a barraca. O sinistro grito não tornara a ser ouvido e ele começava a crer que, o que quer que o houvesse emitido, deveria ter isso para longe dali. Suspirou com uma leve pontada de alívio, sem largar a faca firmemente presa em seus dedos suados. De súbito, um outro som lhe chegou aos ouvidos. Passos. Apurou o ouvido, imerso na escuridão total da barraca. Ouviu com clareza o som de passos cautelosos movendo-se em direção da barraca. O ruido da vegetação cedendo sob o peso de alguma coisa caminhando sorrateiramente a poucos metros dali. Sentiu-se prestes a perder o controle de seus movimentos. Não chegava sequer a sentir as falanges doloridas, tenazmente cerradas em torno do punho da faca como pinças de aço. Tentava não produzir som algum enquanto respirava ofegante. O coração disparado batendo com toda força em seu tórax. Os passos pararam. Moveu lentamente a cabeça tentando ouvir novamente o som, mas apenas a chuva era audível. De novo as furtivas e lentas passadas começaram. Também ouvia agora o que lhe parecia um horrendo sussurro rouco e sibilante. Cerrou os dentes, absolutamente aterrorizado. Nunca ouvira nada como aquele ruído, tão sinistro e gutural. O suor lhe inundava os olhos, que ardiam. Cada nervo seu parecia exposto. O corpo tremendo em espasmos enquanto ouvia a coisa rondar a barraca sem pressa alguma. A chuva continuava a cair pesada. Os passos cessaram um instante que ele não soube avaliar a duração. Um rosnado grave e surdo soou baixo em meio ao som da chuva. Mais silêncio. Cerrou ainda mais os dedos empunhando a faca. Os passos recomeçaram. Abriu os olhos para o escuro impenetrável da noite. Talvez se fizesse algum ruído ou acendesse a lanterna conseguisse afugentar a coisa lá fora. Os passos pararam mais uma vez. A coisa estaria parada, como que aguardando algo. Os minutos se arrastavam pesados e tensos ao som da chuva torrencial. Silêncio. Somente a torrente e sua respiração se faziam ouvir na noite. E, como numa explosão, o som de um trovejante urro disparou enquanto algo pesado saltava sobre a barraca. Tentou debater-se, cego e desesperado, mas violentos golpes o atingiram na cabeça. O gosto de sangue lhe invadindo a boca e a tontura que o fizera adormecer.
Não sabia quanto tempo ficou desacordado. Apenas abriu os olhos, atarantado. O corpo inteiro doía e estava dependurado pelos pés, muito machucado, no interior de uma espécie qualquer de gruta. O som dos passos agora era seguro, sem pressa. Um cheiro pútrido e repugnante encheu o ar por completo. Na semiescuridão da gruta, viu surgir um vulto de aparência aterradora. Apenas uma grotesca sombra a mover-se nervosamente no escuro em gestos lerdos. Os movimentos trêmulos, quase espasmódicos. Pareceu distinguir na figura uma vasta e desgrenhada cabeleira de onde parecia emergir um rosto proeminente e deformado como a face de um animal, e dedos esqueléticos de longas garras no final de braços finos que quase tocavam o chão. A silhueta magra parecia envolta numa longa e repugnante membrana que lhe pendia dos braços e ao mover-se produzia um farfalhar úmido e membranoso, como que envolta em plástico ou borracha.
Durante um longo tempo a criatura mexeu em objetos diversos, espalhados em absoluta desordem, sussurrando estranhas e ininteligíveis palavras numa voz áspera e sibilante. Examinava frascos e ossos, revirava pequenas caixas de conteúdo que ele ignorava absolutamente. Parou de repente, voltando-se para ele. Os dedos ásperos e fortes subitamente fechando-se em torno dos seus cabelos num violento puxão. A cabeça já dolorida latejou com força enquanto a pele que lhe cobria o crânio ameaçava desprender-se. A coisa aproximou o rosto do seu. O hálito pútrido exalando o odor de entranhas apodrecidas e gotas de saliva espumosa lhe atingindo a face sob a respiração pesada da criatura. Novamente a ânsia de vomito. A criatura virava sua cabeça firmemente presa pelos cabelos. Parecia examinar cada detalhe de seus traços ou mesmo adivinhar sua ossatura sob os músculos do rosto. A coisa abriu a boca. Uma lufada de ar morno e podre lhe atingiu o rosto em cheio e ele sentiu algo úmido, viscoso e áspero como uma lixa deslizar sobre seu rosto. O fedor nauseabundo o sufocava enquanto a criatura lhe lambia a face. A criatura o soltou de repente. A nuca atingindo em cheio a parede atrás de si quando seu corpo oscilou, pendurado pelos pés, com um forte impacto. Outra vez os dedos ásperos o seguraram pelos cabelos, desta vez detendo o balanço do seu corpo. Ele sentiu uma dor profunda e lancinante no abdome e um calor lhe correu o corpo. Cerrou os dentes com a toda a força que possuía, travando a mandíbula e grunhindo de dor. Fluidos quentes e viscosos lhe escorriam pelo peito até o pescoço e o queixo, inundando as narinas e a boca. Pode sentir mãos lhe invadindo avidamente o corpo aberto e revirando-lhe as entranhas ainda vivas e pulsantes. O som liquido de carne rasgada. Na sua mente, tudo que veio foi um doloroso arrependimento e um pavor inexprimível. Desejou chorar, alucinado de dor e medo. Pensou em estar em sua casa, a salvo, mas sabia que jamais voltaria a ela.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Feliz ano novo, cowboy

Feliz ano novo, cowboy

Olho com uma certa desolação o horizonte recortado por um mar de casas amontoadas e feias, cinzentas. Dão a impressão ao longe de uma imensa pilha de lixo ou túmulos de um vasto e caótico cemitério maltratado. As esqueletais antenas de TV cheias de restos esvoaçantes de pipas que se espalham pelos fios elétricos dos postes. Tudo seco e quente, como a aridez inamistosa do deserto, onde nada é caloroso além do sol forte abrasador, e do vento morno que traz o cheio de fuligem e de esgoto junto com vozes de crianças.
Uma pena. Não sou tão cowboy quanto gostaria. Não vou além do surrado chapéu de couro, dos cigarros sempre á mão e da cara de poucos amigos. Uma pena. Detesto ser um farsante.
Tudo que queria agora era uma vodka com gelo para zombar do verão seco e escaldante, estar num lugar qualquer longe, muito longe. Não há nada de que eu gostaria de estar perto agora.
O mundo veio abaixo. Mais uma vez. Não sei como me sentir agora. Talvez devesse chorar, mas não sou bom nisso. Nunca fui. Estou num destes instantes em que tudo parece ser um filme, e tudo que você deseja é que fosse mesmo um. Seria tudo fugaz e seria apenas uma fraude ensaiada para ganhar elogios de intelectuais e críticos de arte. Mas não é. E a pergunta soa ecoando como uma goteira numa grande sala escura: e agora, cowboy?
Momentos felizes passam como estrelas cadentes. Eles não vão voltar. Outros momentos ainda melhores que não foram além de planos apagam-se como velas na chuva. Não aprendeu ainda, não é, cowboy? Não acho que vai aprender agora, então escute: não pense no futuro, ou vai desejar ter sido baleado de verdade. Balas morais podem machucar como o diabo mas nunca matam. Você invariavelmente vive para sentir a dor que nada faz passar. Você quer socar uma parede até arrebentar os punhos, quer se encharcar de gasolina e acender um cigarro para incinerar em paz, quer dormir para sempre. Creio que seja assim que sentem as promessas não cumpridas. Mas acho que desaprendi a me abalar, a chorar velório de romance falido. Não sinto raiva, ao menos não tanta. Nem sei “se” ou “de que” exatamente sinto falta. Apenas me sinto num vazio sufocante, causticante, um deserto que oferece sempre a mesma paisagem seca e sem vida em todas as direções até o horizonte.
Então, cowboy? O que vai ser? Sentar no meio do deserto e esperar a sorte lhe trazer uma chuva ou uma tempestade de areia? Seguir até encontrar uma cidade onde se virar ou até encontrar nada e morrer seco e perdido no meio do deserto?
Toco as cordas de aço. Um som melancólico, seco, árido e metálico. Olho mais uma vez o amontoado de casas manchadas e cinzentas ao meu redor sem nenhuma emoção além de uma vaga tristeza apática e sem vida como se meu coração houvesse parado e minhas veias se enchido de areia. Fantasmas de momentos felizes e há muito sepultados vêm me assombrar como vespas do inferno. Deve ter sido bem triste me ver pelas costas naquela noite com meu chapéu, carregando as malas e o violão sem promessas de voltar. Não quero pensar nisto. Nem em coisa alguma.
Minha garganta seca pede vodka. Acendo um cigarro. Lembro que o natal passou como uma sombra, como o sopro que estremece a chama de uma vela. Um dia amargo, como chegar em casa voltando de um enterro.
O ano vai acabar, como sempre acaba. E então, cowboy? O que vai fazer depois que silenciarem os fogos e a cerveja acabar? A onde vai com seu chapéu e seu violão? Onde pensa em chegar com seus olhos de réptil e sua cara de deserto?