O escuro
Ele abriu os olhos aos poucos, com dificuldade. Alguma coisa
espessa e ressacada que ele imaginou ser sangue colava suas pálpebras e lhe
irritava e feria os olhos. Sua cabeça latejava dolorosamente como que golpeada
por dentro com um martelo, seus olhos doíam por dentro, no fundo das órbitas.
Sentia as narinas arderem doloridas, inundadas de sangue que lhe escorria da
garganta para a boca com um sabor desagradável e familiar. Os ouvidos pareciam
tampados e doloridos. Desnorteado como estava, custou um pouco a perceber que
estava dependurado pelos pés. Forçou um pouco sua mente, a muito custo, para
tentar recordar-se de como fora ali parar. A floresta. Sim, estava na floresta,
catando lenha para a fogueira. Havia chegado logo ao amanhecer e montado a
barraca ao lado de um penhasco pedregoso junto a uma volumosa corredeira. Um
lugar bem aprazível, de aspecto selvagem e intocado, embrenhado no fundo da
floresta algumas horas a pé da trilha principal.
Fungou o sangue nas narinas. A boca e a garganta enchendo-se
da espessa e repulsiva mistura de secreções, que tentou inutilmente engolir
para aliviar a sensação de seca na garganta. Tentou cuspir, mas tudo que
conseguiu foi deixar que escorresse lentamente pela sua face o fluido quente e
viscoso. Sua cabeça doeu mais forte, pesada como se feita de chumbo.
Havia caminhado longamente durante o dia para melhor
explorar o local, admirado com as imensas e frondosas árvores de ásperas cascas
cobertas de musgo, catando os gravetos que ia encontrando para deles fazer sua
fogueira. Retornou ao acampamento algumas horas depois com o suor a lhe
escorrer pela testa e as mãos arranhadas e sujas. O cheiro da floresta a lhe
impregnar as roupas. Preparou seu modesto almoço e se pôs a contemplar a vista
do imponente penhasco a sua frente. Uma névoa suave parecia cobrir a vasta
floresta que se estendia lá embaixo. Ao longe, grandes montanhas de ar sombrio
se erguiam majestosas e inescrutáveis. Dava a impressão de estar num filme
qualquer sobre mundos perdidos e desconhecidos, com todas aquelas árvores
imensas.
À noite, vencido pelo cansaço e pelo aconchegante frio que
ia chegando, recolheu-se a sua barraca, metendo-se sob o cobertor e adormecendo
logo em seguida. O
som das criaturas noturnas chamando hipnoticamente o sono.
Passou uma rápida vista pelo lugar em que estava, movendo
com dificuldade a cabeça. O pescoço rígido e dolorido parecia não obedecer a
sua vontade. Viu-se envolto numa penumbra vermelha e quente, abafada. O ar era
sufocante, cheio de uma fumaça pesada e oleosa que se desprendia de uma pequena
fogueira onde bruxuleavam chamas vermelhas cuja luz projetava estranhas sombras
nas paredes pedregosas incrustadas de raízes. Teve a impressão de enxergar
vários ossos, frascos imundos, rústicas facas e cutelos adornados com ossos e
figuras demoníacas sobre uma tosca mesa bem próxima de onde estava. O lugar era
estava uma absoluta mixórdia e impregnado de um fedor nauseabundo de urina,
mofo e decomposição. Seu estômago pareceu revirar-se em mal-estar. A ânsia de
vômito quase incontida a lhe forçar a garganta.
Forçou debalde as amarras que lhe tolhiam os movimentos,
revirando a mente na tentativa de esclarecer a si mesmo de que maneira fora
chegar ali, naquele lugar imundo que mais parecia a toca de um animal. Lembrou
do ar fresco e úmido da densa floresta. Depois de uma ligeira refeição matinal,
se pôs a explorar o restante do lugar e catar mais gravetos para uma nova
fogueira, adentrando ainda mais para o norte e oeste de onde estava acampado. A
floresta ali lhe pareceu por demais silenciosa, como se ali nada vivesse alem
da grossa vegetação, diversos cogumelos e alguns outros fungos e musgo. O
silêncio onde mal se ouvia o farfalhar do vento nos galhos mais altos ecoava
pela suave neblina que envolvia todo o lugar. Apenas ao longe, às vezes, o pio
ocasional e perdido de alguma ave. O céu de um embaçado cinzento não permitia sequer
saber com exatidão a posição do sol. Tirou do bolso o telefone celular. Sem
sinal. Resolveu voltar ao acampamento lamentando não ter companhia. Seria
agradável alguém para conversar um pouco e afastar a má impressão que o lugar
começava a lhe causar.
Depois da modesta refeição, à tarde, folheou um livro para
se distrair. Lá fora uma fria garoa caia incessantemente. Esperava que o dia
seguinte fosse de sol. Talvez o mau tempo houvesse tornado mais reclusa a fauna
local que viera pesquisar. Olhou novamente o telefone, desta vez com uma ponta
de preocupação. Muito inconseqüente de sua parte se embrenhar assim sozinho
naquela mata perdida no meio do nada. Não queria imaginar as conseqüências de
algum infortúnio imprevisto, pois simplesmente não teria a quem pedir ajuda em
caso de necessidade, e ali, naquele fim de mundo, o telefone nada mais era que
um relógio. Soltou um longo suspiro e adormeceu por fim, esgotado. Amanhã seria
um dia melhor, certamente.
Despertou ao final do crepúsculo. O céu agora era uma massa
de plúmbeas nuvens de chuva iminente. Apanhou o violão que trouxera para
distrair-se, executando algumas melodias. A chuva principiava a desabar com
força, numa torrente gelada e volumosa. Ouviu por um bom tempo o contínuo
martelar das grossas gotas sobre seu abrigo de lona e plástico, satisfeito por
estar protegido e seco. O vento em rajadas sacudia a barraca a todo instante.
Para sua sorte, a barraca era bem resistente e ele a havia montado com bastante
firmeza. O som da água escorrendo pelo solo pedregoso dava idéia de um rio
correndo ao seu redor. De súbito, julgou ouvir ao longe um som que lhe
enregelou os ossos. Um grito áspero, agudo e estridente que se prolongava até
um profundo grunhido nasalado. Parou a musica na tentativa de ouvir melhor o
medonho som. Nada. Apenas o som da torrente que se precipitava sem trégua sobre
a floresta. Esperou mais algum tempo com os ouvidos apurados na expectativa de
que o som se repetisse, mas sem tornar a ouvir o grito. Somente o som da chuva
contínua. Voltou ao violão, certo de que havia sido apenas impressão sua. Talvez
um pássaro de uma espécie ignorada reclamando da chuva ou algo do tipo. Mais
tarde, com os dedos doloridos pelas cordas e embalado pelo som da chuva,
adormeceu outra vez, abraçado ao instrumento.
A aspereza das cordas lhe machucava os pulsos e os
tornozelos. Os nós eram apertados como torniquetes, impossibilitando quaisquer
movimentos. Tentou engolir, em
seco. A boca estava seca e tinha o desagradável sabor de
sangue e todo o seu corpo doía. Durante um bom tempo permaneceu lutando contra
a dor e tentando-se manter consciente, mergulhado da escuridão vermelha e
esfumaçada. Ouviu o som de passos arrastados e rudes vindos de algum ponto ali
bem perto, sentindo um calafrio lhe correr o corpo. Sentiu-se prestes a
desfalecer, esgotado e apavorado. Lembrou-se de haver despertado no meio da
noite. Não fazia idéia de que horas seriam aquelas. A chuva continuava a cair
fortemente. Espreguiçou-se com alguns estalos das suas juntas e procurou uma
barra de chocolate na mochila, sentindo-se um pouco entediado. Encontrou o doce
e mordeu um pedaço enquanto imaginava quanto tempo ainda iria chover. E, outra
vez de súbito, o estranho grito ecoou pela noite. O mesmo som que lhe arrepiara
o corpo horas antes. Desta vez, porém, o sinistro lamento lhe soou bem mais
claro e mais próximo. Sentiu-se repentinamente arrependido de haver ido sozinho
até ali. Não conseguia imaginar que espécie de animal poderia ter produzido tal
som, que ao mesmo tempo lhe lembrava um horrendo pio de ave e o urro de um
grande animal. Esperou outra vez por longos minutos. Novamente o aterrador
ruído. Para seu desespero, estava claramente mais próximo à sua barraca. Bem
mais próximo. O suor frio do medo começava a brotar de sua testa e todo o
corpo. Tremia assustado, confinado na minúscula barraca que a chuva açoitava
sem piedade. A barraca o protegia bem da chuva, mas não se sentia seguro contra
outras coisas ali dentro. Alcançou a afiadíssima faca de caça sob o saco de
dormir e desligou a lanterna. Talvez a ausência de luz despistasse o que quer
fosse aquilo que parecia estar vindo em sua direção. Tinha a nítida impressão
de que todos os sons pareciam mais audíveis sob a escuridão intensa. Escuridão
absoluta. Não enxergava sequer as próprias mãos. Ouvia com clareza sua
respiração acelerada pela adrenalina destacando-se do monótono martelar da
chuva e sentia frias gotas de suor lhe escorrerem pelo nariz e pelas pálpebras.
Os músculos do torso e dos punhos retesados, rígidos como os de um cadáver.
Apenas a absoluta escuridão e o som da chuva incessante.
Durante bastante tempo ficou ali, alerta. O som da chuva
diminuindo de intensidade, mas sem cessar. O murmúrio da água escorrendo entre
as pedras e as gotas martelando a folhagem e a barraca. O sinistro grito não
tornara a ser ouvido e ele começava a crer que, o que quer que o houvesse emitido,
deveria ter isso para longe dali. Suspirou com uma leve pontada de alívio, sem
largar a faca firmemente presa em seus dedos suados. De súbito, um outro som
lhe chegou aos ouvidos. Passos. Apurou o ouvido, imerso na escuridão total da
barraca. Ouviu com clareza o som de passos cautelosos movendo-se em direção da
barraca. O ruido da vegetação cedendo sob o peso de alguma coisa caminhando
sorrateiramente a poucos metros dali. Sentiu-se prestes a perder o controle de
seus movimentos. Não chegava sequer a sentir as falanges doloridas, tenazmente
cerradas em torno do punho da faca como pinças de aço. Tentava não produzir som
algum enquanto respirava ofegante. O coração disparado batendo com toda força
em seu tórax. Os passos pararam. Moveu lentamente a cabeça tentando ouvir
novamente o som, mas apenas a chuva era audível. De novo as furtivas e lentas
passadas começaram. Também ouvia agora o que lhe parecia um horrendo sussurro
rouco e sibilante. Cerrou os dentes, absolutamente aterrorizado. Nunca ouvira
nada como aquele ruído, tão sinistro e gutural. O suor lhe inundava os olhos,
que ardiam. Cada nervo seu parecia exposto. O corpo tremendo em espasmos
enquanto ouvia a coisa rondar a barraca sem pressa alguma. A chuva continuava a
cair pesada. Os passos cessaram um instante que ele não soube avaliar a
duração. Um rosnado grave e surdo soou baixo em meio ao som da chuva. Mais
silêncio. Cerrou ainda mais os dedos empunhando a faca. Os passos recomeçaram.
Abriu os olhos para o escuro impenetrável da noite. Talvez se fizesse algum
ruído ou acendesse a lanterna conseguisse afugentar a coisa lá fora. Os passos
pararam mais uma vez. A coisa estaria parada, como que aguardando algo. Os
minutos se arrastavam pesados e tensos ao som da chuva torrencial. Silêncio.
Somente a torrente e sua respiração se faziam ouvir na noite. E, como numa
explosão, o som de um trovejante urro disparou enquanto algo pesado saltava
sobre a barraca. Tentou debater-se, cego e desesperado, mas violentos golpes o
atingiram na cabeça. O gosto de sangue lhe invadindo a boca e a tontura que o
fizera adormecer.
Não sabia quanto tempo ficou desacordado. Apenas abriu os
olhos, atarantado. O corpo inteiro doía e estava dependurado pelos pés, muito
machucado, no interior de uma espécie qualquer de gruta. O som dos passos agora
era seguro, sem pressa. Um cheiro pútrido e repugnante encheu o ar por
completo. Na semiescuridão da gruta, viu surgir um vulto de aparência
aterradora. Apenas uma grotesca sombra a mover-se nervosamente no escuro em
gestos lerdos. Os movimentos trêmulos, quase espasmódicos. Pareceu distinguir
na figura uma vasta e desgrenhada cabeleira de onde parecia emergir um rosto
proeminente e deformado como a face de um animal, e dedos esqueléticos de
longas garras no final de braços finos que quase tocavam o chão. A silhueta
magra parecia envolta numa longa e repugnante membrana que lhe pendia dos
braços e ao mover-se produzia um farfalhar úmido e membranoso, como que envolta
em plástico ou borracha.
Durante um longo tempo a criatura mexeu em objetos diversos,
espalhados em absoluta desordem, sussurrando estranhas e ininteligíveis
palavras numa voz áspera e sibilante. Examinava frascos e ossos, revirava
pequenas caixas de conteúdo que ele ignorava absolutamente. Parou de repente,
voltando-se para ele. Os dedos ásperos e fortes subitamente fechando-se em
torno dos seus cabelos num violento puxão. A cabeça já dolorida latejou com
força enquanto a pele que lhe cobria o crânio ameaçava desprender-se. A coisa
aproximou o rosto do seu. O hálito pútrido exalando o odor de entranhas
apodrecidas e gotas de saliva espumosa lhe atingindo a face sob a respiração
pesada da criatura. Novamente a ânsia de vomito. A criatura virava sua cabeça
firmemente presa pelos cabelos. Parecia examinar cada detalhe de seus traços ou
mesmo adivinhar sua ossatura sob os músculos do rosto. A coisa abriu a boca.
Uma lufada de ar morno e podre lhe atingiu o rosto em cheio e ele sentiu algo
úmido, viscoso e áspero como uma lixa deslizar sobre seu rosto. O fedor
nauseabundo o sufocava enquanto a criatura lhe lambia a face. A criatura o
soltou de repente. A nuca atingindo em cheio a parede atrás de si quando seu
corpo oscilou, pendurado pelos pés, com um forte impacto. Outra vez os dedos
ásperos o seguraram pelos cabelos, desta vez detendo o balanço do seu corpo.
Ele sentiu uma dor profunda e lancinante no abdome e um calor lhe correu o
corpo. Cerrou os dentes com a toda a força que possuía, travando a mandíbula e grunhindo
de dor. Fluidos quentes e viscosos lhe escorriam pelo peito até o pescoço e o
queixo, inundando as narinas e a boca. Pode sentir mãos lhe invadindo
avidamente o corpo aberto e revirando-lhe as entranhas ainda vivas e pulsantes.
O som liquido de carne rasgada. Na sua mente, tudo que veio foi um doloroso
arrependimento e um pavor inexprimível. Desejou chorar, alucinado de dor e
medo. Pensou em estar em sua casa, a salvo, mas sabia que jamais voltaria a
ela.